[Seleção de Contos] Cresci no Paraíso por Ironi Jaeger

Tema: Memórias da Infância
Autora: Ironi Jaeger

CRESCI NO PARAÍSO

Nasci no ano de 1965, no interior do Rio Grande do Sul. Filha de agricultores fumageiros (plantadores de fumo); ao todo doze irmão, nove meninos e três meninas. 

Dos meus tenros anos pouca coisa sei a não ser que meninas não eram bem-vindas numa família colonial, ainda mais uma menina frágil e delicada como eu. Não sei exatamente qual idade tinha quando fui acometida por (coqueluche) é uma doença respiratória transmitida por bactérias atingindo principalmente bebês, hoje em dia erradicada pela vacina. 

Pois bem, contam que já me consideravam morta, quando minha madrinha em um último gesto colocou em volta do meu pescoço um pano embebido em querosene. E funcionou, porque aqui estou eu. 

Mas eu cresci, porque tinha uma missão no mundo. Lembro que aos sete anos fui para a escola que ficava a 6km da nossa casa, e este caminho fazíamos todos os dias, eu, meus irmãos e primos. Sim brigávamos na ida e na volta, entramos nos potreiros e incitavam um boi brabo a nos perseguir, e então corríamos até nossas pernas não suportar mais. 

Lembro das brincadeiras e dos desafios de tudo que era proibido ou dito para assustar, tiramos a prova e assim numa noite de lua cheia munidos de foices e enxadas caminhamos de lanterna na mão até o pé de figo maduro (minha mãe queria os figos para conserva) e dizia para nós, que debaixo do pé de figo, morava a mula sem cabeça. Nesta noite em especial decidimos enfrentar a mula sem cabeça. quando nos aproximamos do pé de figo maduro, havia em volta dele uma luz, como de lampião e lá estava não a mula, mas um dos empregados do meu pai, roubando os figos. E então um fato curioso aconteceu com o susto, ele correu para um lado e nos para casa. Não lembro se contamos o fato aos adultos, mas descobrimos que a mula sem cabeça não existia. 

Muitos fatos vêm a minha lembrança; um patinho chamado qua, qua, que foi devorado por uma raposa. Uma galinha de estimação que meus irmãos ameaçavam botar na panela. 

Plantamos nossas próprias roças de milho verde e sim, precisávamos trabalhar, principalmente no tempo de secagem do fumo, onde dia e noite havia os guardiões das fornalhas que não permitiam que o fogo perdesse a intensidade necessária para a secagem dentro das estufas. Em turnos de vigia organizados, caminhávamos longa distância até a roça, buscar milho verde ou batatas para assar e comer enquanto de vigia. 

O medo que sentimos na primeira vez que vimos um jacaré ou crocodilo, porque nossos pais contavam que ele comia as crianças que iam sozinhas até o rio. 

Ah, o rio, fonte das nossas brincadeiras mais legais. Uma árvore cujos galhos pendiam sobre a água e quando chegava sexta-feira santa, era proibido gritar, subir em árvores ou outra atividade, era um dia de silêncio e reflexão. Subimos até aquela árvore cujos galhos pendiam sobre o rio e gritávamos, até perder a voz, esperando sermos castigados por isso, mas na nossa imaginação escolhemos aquela árvore porque se por acaso alguém caísse, seria na água, 

Havia os tucanos nos pés de ameixa, havia lagartos cuja amizade eu conquistei, tinha as aranhas caranguejeiras que não precisava ter medo. Os carrinhos de lomba, cujo final de descida, acabava nos pés de gravatás. 

O pomar carregado, a horta verde com suas hortaliças variadas. Lembro que em dias alternados havia carne e ovos, menos nos domingos, onde se comia galinhada e sobremesa. 

O touro bravo, que até hoje arrepia meus braços, o cavalo de corrida, a vaca que me juntou em seus chifres, jogando-me longe e o prego que furou meu pé saindo no peito do pé, da dor, o não poder caminhar. 

Lembro que durante uma crise de sarampo quase perdi dois irmãos. Lembro da última gravidez da minha mãe, quando anunciaram na rádio que era uma menina e ao chegar em casa era um menino. 

Lembro da primeira vez que vi um velório de um bebe, eram filhos de escravos libertos que moravam nas terras do meu pai. Aquele pequeno caixão branco em cima da mesa, ainda está na minha memória. 

Tudo isso são fragmentos da minha memória, sem ordem cronológica, porque não sei como organizar, mas tudo ocorreu entre os sete e doze anos. 

E como esquecer dos pães que minha mãe fazia e as cucas? Como esquecer dos fins de semana na casa dos meus avós, dos pés de caqui carregados, do café com açúcar que só na casa dos avós era permitido. 

Todos os finais de safra meu pai comprava sapatos e roupas, e claro balas para nós que eram divididos em números iguais para cada um. E não poderei esquecer das longas ausências do meu pai, quando então ficávamos sob a guarda dos tios. Só depois de adulta foi saber o motivo, meu pai tinha câncer e precisava se ausentar para tratamento. 

Como esquecer o incêndio que levou embora todo o fruto do trabalho de um ano inteiro e a dificuldade chegou. E aos poucos tudo foi vendido, porcos, galinhas, bois e as terras, era hora de uma nova aventura, morar na cidade. 

Deus deve ter planos para as pessoas, planos que só Ele conhece. Aos doze anos, eu saí do paraíso para a selva de pedra, mas eu posso garantir a quem quiser ouvir, eu Ironi,fui criada até os doze anos no paraíso. 


Minibiografia

Ironi Jaeger, escritora contista, coordenadora do FLAL, Festival de Literatura e Artes Literária. 

Livro na Amazon: O Grão da Mostarda

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