Doce Espera: diário da mamãe e do bebê

[Contos de Dezembro] Um Doce de Natal por G. J. Moreira

Olá leitores,

"A chegada do Natal é desejada por muitas pessoas, alguns adoram o clima festivo, outros não têm simpatia pelo evento, mas uma coisa é certa, é uma data que pode ser o ápice de alguns e a derrocada de outros. Ou os dois sentimentos para o mesmo ser." 
G. J. Moreira - Sinopse


Um doce de Natal


Acabei de nascer. Depois de muito misturado, finalmente me vi sendo uma unidade, não mais apenas parte de uma grande massa. Ainda pequeno e sem recheio, esteiras intermináveis me conduziam. Braços mecânicos com injeções me cutucavam sem pedir permissão. Pinças gigantes me esticavam. Amassavam. Perfuravam. Enrolavam. Só sentia as reações ocorrendo no meu âmago. Havia centenas de outros como eu enfileirados em direção ao desconhecido. 

A área onde estava era muito grande, cheias de máquinas, contei apenas cinco pessoas na linha de produção. O companheiro da frente disse que era normal, afinal, estávamos na melhor fábrica da região. Quando questionei o porquê de sermos tão mexidos, ele me respondeu que esse era o grande segredo. Seríamos famosos, disputados por diversas pessoas em meio às compras de Natal. 

A esteira parou. Dois homens ficaram ao meu lado. Um deles, o mais novo, tinha idade de um homem na casa dos trinta anos e gesticulava com entusiasmo todas as mudanças feitas para alcançar as metas de redução de custos. O mais velho tinha óculos de meia-lua apoiados na ponta do nariz e alternava o olhar entre o mais novo e a prancheta repleta de papéis. O jeito do veterano era de alguém calculista, que ponderava sobre as conquistas expostas do amigo de jaleco. 

— Não sei se isso é uma boa ideia, Rubens. Isso já dá problema no arroz e você agora quer entupir eles também. — O homem de óculos apontou para mim. — Sabe, a diferença entre os nossos e os da concorrência é a diversidade de... 

— Otávio — Rubens apoiou a mão no ombro do amigo mais baixo —, isso foi decidido na reunião geral de metas, a diretoria toda concordou. 

O que a diretoria concordou não fiquei sabendo, mas Otávio, derrotado, meneou a cabeça e apertou o botão que me fez voltar a seguir a fila. Entramos em um compartimento muito quente. O calor pareceu insuportável, mas ele foi o responsável pelo meu crescimento. Tenho quase certeza que as coisas que me injetaram também tinham sua contribuição. 

Agora era grande e fofo. O aroma que exalava era divino. O perfume de todos iguais a mim fazia com que qualquer pessoa suspirasse para nos sentir. Isso aconteceu quando uma abertura apareceu na minha frente e fomos para outra esteira. Ao voltar ao ambiente claro do chão da fábrica percebi que minha tonalidade se tornara morena no exterior e uma massa amarela compunha meu interior. E sim, estava recheado. Então era isso que os homens falavam.

Tive pouco tempo para refletir das outras mudanças, pois fui embalado e encaixotado. Só consegui vislumbrar que a caixa era amarela e as letras da marca do que eu era tinham a cor branca e o contorno em vermelho. Só sentia ser levado de um lugar para outro, ser levantado e abaixado, mas nada pude ver, apenas ouvir:

— Cuidado com isso aí! 

Depois um balanço constante aconteceu por um longo tempo. Às vezes um solavanco era dado, mas novamente o bamboleio retornava. Nem pude perguntar ao meu companheiro, pois nossos destinos foram diferentes.

— Até que enfim eles chegaram! As pessoas não querem saber de outra marca, só dessa.

Mais uma vez passei para outro meio de transporte, mas o homem que nos conduzia assoviava uma música em meio ao caos onde estava.

— Leve para o corredor de pães!

— Já vai, chefia! 

Foram mais alguns metros de assobio desafinado do condutor até que diversas pessoas comentavam:

— Graças a Deus! Pega dois, amor!

— Esse mercado já foi melhor, onde já se viu deixar acabar todo o estoque. 

— Ei, eu quero três!

— Meu amigo e minha amiga, só aqui tem o melhor preço! Nada de empurrar, tem pra todo mundo!

— Coloca essa etiqueta pra mim, moço!

Realmente éramos disputados, concordei com meu colega perdido. Eu caí no chão e mesmo assim fui escolhido por uma mulher. Ela conversava com alguém mais novo sobre ter me adquirido:

— Brício, você vai ver, esse é o melhor! Nada daquela porcaria que seu pai comprou na semana passada.

— Mas, vó, o pai só comprou pra você experimentar!

— Eu disse pra ele — continuou a senhora — que o melhor é dessa marca, mas, sabe, meu filho é mesmo um teimoso. E pão duro!

— Nisso preciso concordar: o pai é meio pão duro. — Os dois riram. — A senhora tem que puxar mesmo a orelha dele, vó.

Continuei a ouvir os comentários sobre a chegada do Natal. A avó do pequeno Brício comentava sobre as comidas que iria preparar: bacalhoada, bolinho de bacalhau, lasanha (“Para esse pessoal fresco que diz que não come peixe por causa da espinha!”), arroz doce, aletria, rabanada. Nossa, fiquei muito feliz, aquela casa realmente gostava de Natal! 

Descobri que ainda faltavam alguns dias para a grande ceia e que todos queriam me experimentar antes da noite do dia vinte e quatro de dezembro, mas dona Sonia — a senhora que me comprou — era pior que cão de guarda:

— Se eu pegar você mais uma vez mexendo nessa caixa, Alan — ouvi um tapa —, eu juro que vou te dar uma surra!

— Mas, mãe, posso comprar outro depois! — Fiquei intacto. Ao que parecia, a dona Sonia era uma mulher de muita personalidade. 

O dia da véspera de Natal foi uma correria naquela casa. Duas mulheres disputavam o cargo de chef da cozinha, dona Sonia e outra chamada de Simone. Depois de muito discutirem finalmente fui aberto e pude ver a senhora que me escolheu: dona Sonia era uma mulher negra muito bonita e sorridente. Havia mais seis pessoas em volta daquela mesa e todos os olhares se voltavam para mim. Senti-me importante.

Mas aí percebe que algo estava estranho, Sonia vinha com uma faca em minha direção e... Que Dor! Fui cortado! Caramba, como doía sentir a lâmina deslizando pelo meu corpo.

— Ah, isso que é panetone de verdade, Alan, sente a maciez! 

— Por Deus, mãe, aquele foi só pra experimentar!

— Sonia, relaxa, o Alan adora experimentar as coisas, pena que nem sempre é algo bom.

— Vivi, é pra você ficar do meu lado!

A discussão das pessoas pareceu insignificante enquanto eu era dilacerado pela outrora querida dona Sonia. Seria esse mesmo o meu destino? Um adolescente recusou um pedaço meu, pois segundo ele, chocotone era mais gostoso e nesse momento me senti ofendido. Afinal, quem viera primeiro?

Uma parte de mim foi mastigada por Sonia enquanto todos a olhavam com expectativa, inclusive eu, que ainda estava na parte ainda intacta no papel. Ela fez um muxoxo e revelou:

— Nossa, só tem uva-passa nesse pedaço que peguei! — A mulher espreitava o pedaço dos outros. — Cadê as outras frutas?

Não satisfeita, me pegou e me desfez totalmente. 

— Sério, não estou acreditando, Gegê — ela se dirigiu para o homem do lado dela —, eles resolveram economizar até no panetone! Nunca mais compro essa marca!

— Agora você também não sabe comprar panetone, dona Sonia?

— Alan, olha o deboche, sou sua mãe!

— Por isso prefiro chocotone! — comentou o adolescente antipático.

— Não fica assim, Sonia — Simone a confortou —, vamos comer meu arroz doce!

Meu último pensamento antes de ser engolido foi que a economia que Rubens exaltou para Otávio não dera certo, pois a marca perderia vários clientes. E esse foi meu fim. Espero que não seja o fim daquela fábrica que me criou, mas uma coisa era certa, rechear panetone apenas de uva-passa não foi uma boa ideia.

Minibiografia



G. J. Moreira nasceu no dia 8 de março, sábado das campeãs do carnaval de 1988. Como o mundo não estava preparado para alguém tão apaixonada por carnaval, não houve esse desfile e sim, uma chuva torrencial no Rio de Janeiro. Gabriella se define como uma metamorfose ambulante que a cada dia rompe preconceitos para se tornar uma pessoa melhor, além de ter o carnaval como estilo de vida e o deboche como arma para sobreviver nesse mundo doido.

















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