Doce Espera: diário da mamãe e do bebê

[Contos de Outubro] Na Cova dos Leões por Wan Moura

Olá leitores,

Hoje iniciamos a semana de contos de Outubro, e nada mais macabro do que os contos do Wan (discorda não fio, você é o tal do Lovecraft para mim). 

Mas vou avisando que este texto pode conter cenas fortes e que ativem gatilhos de memória (bulling, abuso, violência)



NA COVA DOS LEÕES



Daniel entrou na sala de aula, o silêncio agiu como um vírus e investiu contra as cordas vocais dos presentes. Era a Turma 13B. Antes havia gargalhadas em timbres que iam do escárnio à histeria na velocidade de um piscar de olhos. Daniel sabia disso, ele os ouvia sempre que alcançava o corredor principal, bem antes de entrar para mais uma sessão de tortura. Ele via seus colegas de classe como um bando de hienas, senhoras de uma gargalhada azeda e com costelas saltando aos olhos. Uma mistura sobrenatural do maligno com a falsa sensação da inocência juvenil. Tudo isso às vésperas das festas de Halloween da escola. 

O número sete na lista de frequência podia sentir os "quase risos" brotando entre seus carrascos na segunda e terceira fileira, se irradiando até o professor de matemática. O velho observava-o com olhos úmidos e sem cor como os da serpente do Éden. A cada passo em direção ao Purgatório o garoto imaginava palavras se lambuzando no fel, perfurando e rasgando a língua dos miseráveis em busca de liberdade para mais uma vez espalhar o veneno cáustico pelo ar. Eles vestiam fantasias de gnomos, vampiros, fantasmas e zumbis. Havia elfos, samurais, arqueiros, ogros e personagens de animes.

Uma ovelha entre lobos.

Daniel seguiu para o fundo da sala carregando livros de folhas insossas como as desculpas que usava para explicar à mãe sobre o dente, o olho, os joelhos, o orgulho, os lábios... os abusos. Ele caminhou por entre as hienas, o pé não acompanhando o outro e o antebraço direito contraído ao ponto de causar dor. Os dedos das mãos rígidos, o canto da boca sinuoso, a cicatriz no couro cabeludo coçando, o nariz sangrando e a alma em pedaços. Tudo ímã para piadas. Não vestiu fantasia alguma desta vez. Era seu protesto.

O adolescente arrastou o corpo que não lhe pertencia até o fundo da sala e sentiu os murmúrios crescerem entre dentes entupidos de aparelhos ortodônticos, competindo espaço com gomas de mascar e pedaços de papel. Era só uma questão de tempo até que tudo eclodisse. A peregrinação até a cadeira se prolongou como as dores das cirurgias, mas ele prosseguiu. Precisava chegar até seu porto seguro. Entretanto, os burburinhos se tornaram sorrisos amargos e evoluíram para palavras urticantes. 

"Chegou o aborto!", gritou alguém. "Ele não foi parido, veio junto com as fezes!" gritou outro e mais outro, até que todos falassem suas verdades inomináveis. 

As risadas contidas explodiram como uma bomba atômica. 
O professor gargalhou com sua boca de serpente até os olhos lacrimejarem. As garotas puxaram as tranças dos cabelos sebosos e borraram os batons. Meninos berraram palavrões e a sala de aula fervilhou num turbilhão de sons e rostos disformes. Almas e corpos desprovidos de qualquer resquício de humanidade. Morcegos dançavam no ar presos por um pedaço de fita crepe e alguns centímetros de linha vermelha, abóboras sorriam como coiotes salivantes e bruxas voavam em papéis sem pauta, viajando em suas vassouras ao redor dos ventiladores de teto. 

O clima estava quente, quase infernal.

Daniel chegou a seu lugar. Viu seu nome feito com estilete ferindo a fibra coberta por pedaços de lápis. O estilete estava lá, brilhava. Sentou, baixou a cabeça. O caderno e os livros beijaram o chão de granito.

As mãos transpiravam.

As unhas penetraram a carne do antebraço e arrancaram o sangue.

Olhos opacos fitaram o nada. Depois o estilete, os lápis, o sangue, o antebraço...

...O estilete. Brilhando. Clamando. Respirando ódio.

Daniel levantou.

Os pés encontraram a simetria perdida há tempos.

Os dedos se libertaram da atrofia e os músculos estalaram sob o esforço do movimento antes confuso no LABIRINTO da memória.

A lâmina brandia a fúria que as ofensas fizeram nascer, abastecendo a vingança iminente. 

A boca se reprogramou e os lábios assumiram a normalidade. Os olhos vislumbraram a loucura, a mente estipulou metas e o estilete agradeceu o encontro com a primeira carótida. 

Sangue, lágrimas, desespero, gritos, morte. Êxtase! 

Susto, choque. Paralisia. Vermelho vivo, carmesim, escarlate ou qualquer outro adjetivo vindo do Inferno. A loucura absorveu os pecados sendo promotora, juíza e carrasca. 

O beijo da morte alcançou os escarnecedores. O Halloween acontecendo a olhos nus. Hediondo como uma ferida aberta, despejando pus e sangue.

Daniel prosseguiu para seu mestre. O professor concretou os pés sob a mesa onde suas ferramentas dormiam; os olhos escorrendo algo viscoso. Pediu clemência mesmo ciente de que não a teria. Não era Daniel que estava diante dele empunhando um estilete da Faber Castel com a face voltada para o mal e ódio fluindo de seu sorriso. Era o dono da verdade, a psicopatia em pessoa. 

Tão tangível quanto possível. 

As mãos do docente se ergueram em um sinal de súplica indecente, mas Daniel se manteve firme e emanando ódio. A ira acariciando os olhos do matemático, perfurando o rosto, lambendo sua jugular e abrindo seu peito como o pescador ao peixe. 

A morte abraçou o vermelho como sua cor. 

Dos trinta, restaram apenas treze. Em estado de choque ou vegetativo, todos imersos no medo do estilete que brilhava insensível à dor que causava e à morte que nascia a cada silvo da lâmina ao rasgar o ar. 

Eles gritaram. Sempre gritavam.

Daniel também gritou, urrou, gemeu, esbravejou. Acordou.

Suor banhando a testa, dedos dormentes, urina molhando a calça de brim. O antebraço sangrando, a boca aberta; a língua descendo para a glote, pesada como um elefante morto. As narinas bufando e a crise epilética ceifando a vontade. O coração galopando, a asma tingindo a carne de azul, as bochechas se avolumando e os lábios num dégradé mortal.

O mundo se tornando cinza, se desfazendo em pedaços de ilusões. A desoxigenação do cérebro após uma crise de ansiedade é um ácido que devora os neurônios. Daniel sabe disso. Seus colegas também. A escola toda sabe.

Daniel olhou em volta, olhares fatais como disparos de escopeta furavam seu rosto enquanto seus inimigos sorriam orgulhosos. O professor liderava o coro. Xingava, cuspia, apertava a genitália. 

Dessa vez não chamariam a ambulância. Não desejavam estragar a chance de ter um Halloween marcado com a morte de um aleijado. Daniel viu que não eram hienas, tubarões, serpentes, gnomos ou monstros que devoravam sua alma e enfiavam facas em suas costas. Leões. É isso o que eles são. Apesar disso Daniel sonha em abater a todos como ratos.

Com as costas sobre o chão frio da sala 13B Daniel sorri. Planeja a vingança perfeita. 



Um cara apreciador do bom e velho Rock, mas que tem espaço no coração pra Zé Ramalho, Djavan, Alceu Valença e Fagner. Fã do polêmico Lovecraft e do surreal Clive Barker, além é claro do Mestre King, grande culpado por eu curtir tanto o gênero Terror/Horror. Nascido sob o signo de Câncer, no segundo dia de Julho em 1989, natural de São Luís-MA, casado, negro na cor da pele e na alma. Faço parte da comunidade de escritores Maldohorror e da Sociedade do Labirinto. Sou Eletricista e Moço de Convés na Marinha Mercante. Em breve estarei viajando por mares assim como faço em minha mente alucinada, raiz de todo conto maligno que já escrevi.
Sou apenas mais um psicopata camuflado pela escrita. Continuo por aqui, absorvendo e observando... o caos.



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