Doce Espera: diário da mamãe e do bebê

[Contos de Outubro] Apofenia por Wan Moura

Olá leitores,

Hoje iniciamos a semana de contos de Outubro, e nada mais macabro do que os contos do Wan (discorda não fio, você é o tal do Lovecraft para mim). 

Mas vou avisando que este texto pode conter cenas fortes e que ativem gatilhos de memória (bulling, abuso, violência)


APOFENIA


"As almas mais escuras não são aquelas que escolhem existir no Inferno do Abismo, mas sim aquelas que escolhem se libertar do Abismo e circular silenciosamente entre nós."
HALLOWEEN — O Início



A luz oscilante do abajur destaca a pilha de revistas "Mestres do Terror" em cima da escrivaninha. Pôsteres do Donkey Kong e Castlevania decoram as paredes, assim como prateleiras abarrotadas de brinquedos e alguns frascos de remédios. Tudo coberto por poeira e teias de aranha.

O quarto é um labirinto de quinquilharias. A janela permanece fechada, mas através do vidro um brilho esquálido ilumina o garoto sobre a cama. As mãos dele vibram, os dedos percorrem um objeto com agilidade. Os olhos são bolotas acinzentadas, a boca adota o formato de "O" e após um bocejo se fecha. 

Inspira e expira, pinça as pálpebras. 

Recomeça a missão. 

Sincroniza as seis faces de seis cores diferentes com tempo recorde. As dores no pescoço incomodam, o fedor de mofo dificulta a respiração, mas nada o impede de registrar na mente a centésima vitória sobre os mecanismos do Cubo Mágico.

O menino observa o relógio e verifica que a meia noite chegou. Joga o Cubo para baixo da cama. Olha em volta. Desliga a luz do abajur e esconde o corpo sob o lençol com estampas do Pac-Man. 

Encharca o pijama com suor. Os pés coçam, um formigamento alcança as costas. Gira sobre o colchão, se contorce em agonia.

Não há sono algum.

Senta na cama; a coluna encurvada, mãos no queixo. Vislumbra o isolamento. 

As prateleiras, os pôsteres, os brinquedos, tudo retém a escuridão. O guarda-roupa agora se assemelha a um caixão e faz o menino imaginar Bela Lugosi surgindo com presas sedentas por sangue.

Stanley sorri. Aos onze anos sabe que não há nada na escuridão ou sob a cama esperando o momento certo para atacar. Porém, pensar nisso incomoda.

O sorriso desaparece. 

O menino abraça os joelhos, fixa o olhar num dos cantos do quarto e relembra o que a mãe dizia quando a visitava no hospital: "É tudo produto da nossa imaginação." 

A recordação o conforta até algo deslizar de uma parede a outra.

O garoto treme. Escuta estalos no teto, arranhões no chão, sussurros próximos ao ouvido. Uma gargalhada.

Vultos rastejam nas paredes; entram no guarda-roupa, escorrem para debaixo da cama e escavam o colchão. 

Stanley deseja gritar, no entanto a voz se esconde na garganta. Sente o azedume desgastar a língua como as limonadas que toma antes de ver Caverna do Dragão. 

Os sussurros se tornam gritos agudos. 

O jovem cerra os punhos e fecha os olhos. 

As sombras se aproximam pelo forro de madeira, desprendem um odor de comida estragada.

Stanley joga o lençol para o lado e liga o abajur; a luz falha como a respiração de um asmático em crise.

Olhos apavorados correm pelo quarto. O pânico pulsa, rasteja pela coluna. A frieza do medo o toca na nuca com arrepios. 

O menino levanta da cama. Corre e aciona o interruptor próximo da porta; a luz do quarto brilha como o Sol. Stanley caminha até o guarda-roupa. Conta até três e abre as portas.

Roupas, tênis, pôsteres da Nintendo, fotos dos pais. Tudo empoeirado no mesmo lugar de sempre. 
O silêncio reina. 

Stanley abandona o quarto ainda com o medo pulsando nas veias. Chega ao corredor, desce a escada até a sala de estar. O clarão azulado sinaliza que o pai ainda jaz vendo TV. Ele o vê esparramado na poltrona e o chama. 

Não há resposta.

Tenta outra vez.

Nada.

O homem permanece imóvel; o braço esquerdo dependurado, as pontas dos dedos tocam o chão. O braço direito flexionado num ângulo reto, a mão repousando sobre o controle remoto.

Stanley se aproxima nas pontas dos pés, observa a cena com atenção. A cabeça do pai no encosto reclinável, as pernas estendidas para frente sobre a mesa de centro. O cigarro ainda respirando no cinzeiro e o porta-retratos com a foto da esposa arrebentado no chão ao lado de uma garrafa de uísque. 

"Que ele não esteja gelado! Que ele não esteja gelado! Que ele não esteja gelado..."

Stanley estende as mãos e sente a frieza do pai queimar os dedos.

O fôlego falha, os olhos se enchem de lágrimas e o pijama fica ainda mais cheio de suor. As laterais da cabeça ganham agulhadas e na garganta ocorre um incêndio.

O garoto vê os olhos do homem brancos como neve. As pálpebras esticadas, a língua pendendo do canto da boca e sangue seco manchando das narinas ao queixo.

Antes que o grito se forme e ganhe impulso nos pulmões, Stanley nota a barriga do cadáver crescer. Observa um nó surgir sob o queixo, os olhos inflarem nas órbitas e algo escorrer dos ouvidos deixando um rastro sinuoso. Os botões da calça e camisa desprendem, a carne do rosto estica e veias saltam da testa.

Stanley chora e ao evocar mais uma vez o pai uma mão alcança seu braço. Aperta.

O garoto olha para a coisa na poltrona. Observa o morto gorgolejando sangue enquanto grunhe uma frase:

"— É tudo culpa sua!"

O menino se liberta. Corre. Sobe os degraus gritando sem ouvir a própria voz. Tranca a porta do quarto, voa para a cama e esconde-se sob o lençol. Ouve passos marcando os degraus da escada, rápidos como o palpitar de seu coração. 

As luzes oscilam. 

Stanley grita até sentir os pulmões arderem e a visão ficar turva. Começa a tossir e cospe uma porção de terra misturada com sangue. Ouve algo rastejar dentro dos ouvidos, leva as mãos às têmporas.

A sombra chega à porta desejando entrar. A madeira começa a ceder, as dobradiças rangem, rachaduras nascem na superfície de mogno e a maçaneta gira.

De súbito os empurrões cessam.

O silêncio sepulcral se abriga no ar.

Stanley salta da cama, corre para olhar pela fechadura e não percebe uma névoa vermelha se materializando sob a cama.

Ele vira para o lado e projeta as costas para a parede. Da névoa nascem garras, faíscas, um par de olhos negros e uma criatura que surge brandindo ódio. O fedor estrangulador perfura as narinas de Stanley, sua face é um misto de pavor e alegria. 

O infante segura a vontade insana de correr para longe, lançar-se pela vidraça da janela.

Stanley desdobra os braços; as mãos espalmadas, os dedos em riste, os olhos marejados nublando a visão. A boca é um abismo de onde grunhidos escapam tentando formar frases compreensíveis.

A criatura vai ao encontro do garoto. As garras brilham, as presas gotejam uma saliva gosmenta, o corpo escamoso libera insetos asquerosos e os cabelos despejam um líquido viscoso. 

Eles se abraçam.

Stanley sorri em meio a lágrimas. 

A Coisa o aperta. Asfixia. As costelas do garoto cedem ao abraço do reencontro, o sangue escapa pelos cantos dos olhos e narinas. Os membros alcançam ângulos impossíveis, a carne fica azulada e os lábios roxos. Mais terra escapa da boca, os dentes apodrecem e caem. O rosto empalidece, as juntas ficam rígidas e o fedor de carne em decomposição sobrepuja todos os outros. Apesar de tudo o sorriso permanece. 

A névoa se enovela nos tornozelos de Stanley e o arrasta para debaixo da cama. Depois para dentro do Cubo Mágico. A fera se mistura à bruma e some como a luz do abajur no momento em que os barulhos na porta recomeçam.

A chave é introduzida na fechadura; a maçaneta gira e um homem entra no quarto cambaleando, maldizendo a vida. Em uma das mãos carrega a garrafa de uísque. Inclina o vidro sobre a boca e despeja o líquido, engole o álcool em doses cavalares. Limpa os lábios com a costa da mão. Desliga o Walkman, retira os fones do ouvido. 

O sujeito joga os olhos pelo quarto e vê o relógio marcando meia noite e treze. Ao lado o calendário com imagens do Super Mario Bros. ostenta, rabiscado sobre o dia 2 de Julho de 1989, um "X" feito com giz de cera. O homem jura ter ouvido barulhos vindos do quarto do filho, mas não há nada fora do lugar. 

A bombinha para asmáticos, os frascos dos remédios que não surtiram efeito, os pôsteres dos jogos que o garoto adorava, as revistas tenebrosas que alimentavam a imaginação, a data de seis meses atrás marcada com giz no calendário e o Cubo Mágico esquecido sob a cama. Tudo intacto desde o estrangulamento de Stanley pela mãe, portadora da Síndrome de Münchausen.

O homem fecha a porta com o choro travando a respiração, injetando dor nos pensamentos. No caminho de volta desliga a lâmpada do corredor quando a luz começa a oscilar; bebe outro gole de uísque e retorna para a sala sussurrando arrependimentos. 

Dentro do quarto algo arranha a porta.

As sombras parecem mais vivas agora.

Um cara apreciador do bom e velho Rock, mas que tem espaço no coração pra Zé Ramalho, Djavan, Alceu Valença e Fagner. Fã do polêmico Lovecraft e do surreal Clive Barker, além é claro do Mestre King, grande culpado por eu curtir tanto o gênero Terror/Horror. Nascido sob o signo de Câncer, no segundo dia de Julho em 1989, natural de São Luís-MA, casado, negro na cor da pele e na alma. Faço parte da comunidade de escritores Maldohorror e da Sociedade do Labirinto. Sou Eletricista e Moço de Convés na Marinha Mercante. Em breve estarei viajando por mares assim como faço em minha mente alucinada, raiz de todo conto maligno que já escrevi.
Sou apenas mais um psicopata camuflado pela escrita. Continuo por aqui, absorvendo e observando... o caos.



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