Doce Espera: diário da mamãe e do bebê

[Contos de Novembro] Dois Lobos e A Questão do Verdadeiro Mal por DiRock

Olá Leitores,

Iniciando hoje os contos de Novembro da Semana de contos, penúltima edição de 2018. Depois de ler esse conto eu quero que você responda: qual dos dois lobos você alimenta?

Dois Lobos e A Questão do Verdadeiro Mal

I


Tecla. Tecla. Tecla.

Esse som que finca no meu crânio a cada pressionada é a minha melhor companhia nesta senzala no formato de escritório. Talvez no passado o computador fosse branco e as teclas menos duras de apertar. Sujeiras de décadas se acumulam entre os circuitos e dançam nos meus dedos cheios de micose.

"Mas o que você esperava ao participar da redação sobre literatura negra? Ninguém quer ficar lendo mimimi de negro fazendo-se de vítima para tudo!" é o que sempre diz o redator de economia quando ouve minhas reclamações do computador. Seu notebook comprado há dois meses é mais do que o suficiente para falar sobre as maravilhas do trabalho duro exercido pelas maiores empresas do ramo privado.

O redator sobre saúde física aponta que eu só reclamo das teclas duras por falta de feijão e academia. A vida dele é muito fácil por ser autor das matérias mais acessadas em nosso portal. Talvez eu tivesse uma chance maior de atrair leitores se a minha matéria não ficasse antes do rodapé.

Meu texto está quase terminado. Um documento exemplar de quase cinco páginas para ser revisado amanhã de modo a ficar compactado em somente uma, tamanho máximo para o meu tipo de conteúdo.

Só precisava escrever mais dois parágrafos e eu iria embora, se meu chefe não me chutasse da minha mesa só para não pagar hora extra.

Não tenho carro e o preço da condução é um assalto diário, então vou a pé todos os dias para o lar. Por mais que eu insistisse ser um direito meu de requisitar um vale transporte, todos gargalhavam da minha cara. Segundo eles apenas incompetentes pediam esmola.

Pelo menos meu mundo muda de perspectiva ao chegar em casa e vê-la de braços abertos para mim. Os lábios da Eternamente Bela encontram os meus num ritual cotidiano que aquece a minha alma. A tensão é eliminada assim que ela belisca minha bochecha, e o peso dos meus ombros esvai-se quando ela esfrega seus braços gentilmente para me abraçar acompanhada de seu belo sorriso.

Risos e gracejos são compartilhados desde a nossa infância. Naquela época ela era minha melhor amiga nas brincadeiras.

Por não conhecer nenhum dos meus avôs, eu me acolhia nos braços de sua avó, de pele áspera e sorriso gracioso mesmo com alguns dentes ausentes. A idosa tinha as melhores histórias de todo o bairro.

A minha favorita era dos dois lobos. Cada um de nós possui um lobo em nossos corações: um que carrega os sentimentos bons como o do amor, e o outro acumulador das angústias da vida e estimulador do ódio. As duas feras brigam constantemente dentro de nós, com o vencedor capaz de manifestar os seus sentimentos na pessoa.

Lembro a primeira vez que ouvi esta história. Perguntei para a doce senhora qual o lobo com maior chance de vencer, e ela tocou bem no centro de meu peito com seu dedo indicador com unhas frágeis para responder. Uma voz estridente, mas de tom sempre suave: "Aquele que você alimenta."

Nenhuma aula da escola ou faculdade poderia ensinar uma lição melhor. Não consigo lembrar o que é e como se aplica a fórmula de Bhaskara, porém conheço a fórmula do amor para entregar o valor correspondente à Eternamente Bela.

II


Volto ao trabalho no dia seguinte sendo recebido com um esporro do patrão pela matéria incompleta. Caso eu argumentasse, ele me responderia aos gritos para fazer o meu trabalho sem perder tempo com reclamações. Não adiantava discutir com este arrogante de merd- amor. Lembre-se de alimentar o lobo do amor.

Dou bom dia a todos e trato de me sentar para finalizar a matéria e publicar dentro do cronograma.

Tecla. Tecla. Tecla.

O redator sobre Youtubers escancara sua gargalhada ao ver uma coisa engraçada na internet.

Tecla. Tecla. Tecla.

O chefe cai pela terceira vez na pegadinha do gemidão do zap, soltando aquele som pornográfico de seu celular.

Arranco duas folhas de papel A4 e as embrulho no formato de uma bola, inspirado na bola ortopédica dos demais colegas para aliviar a tensão. Seu barulho ao apertar me incomodou ainda mais.

Tecla. Tecla. Tecla.

Outro colega da coluna de economia derrama café quente nas minhas costas, desculpando-se sarcasticamente por não me ter visto ali.

Tecla. Tecla. Tecla.

Quando o redator gordo de saúde alimentar resolve disparar uma desastrosa, barulhenta e estupidamente fedida flatulência, eu não pude mais me controlar. Arranco aquele teclado rústico de minha mesa e o lanço ao ar.

O azar marca sua presença, pois meu chefe estava justamente na posição onde o teclado caiu, causando um leve sangramento em seu nariz.

A poeira incrustada nas teclas cai sobre a camisa social azul de traços verticais finíssimos de tom mais escuro, e a reação alérgica o fez espirrar três vezes, espalhando o sangue de suas narinas para o nosso escritório.

Eu gostaria de ter rido de sua cara, mas eu tinha de alimentar o lobo do amor.

Só queria finalizar o meu trabalho. Mas de que outra maneira eu poderia me comportar ao receber todas aquelas provocações?

Os punhos dele se fecham cada vez mais, esmagando sua própria pele. Os ombros chacoalharam enquanto seus dentes rangiam com um olhar fechado à minha pessoa.

O lobo do ódio está dominando o meu chefe. Eu teria que incentivá-lo a alimentar a fera correta. Mas, claro. Ele não me ouve. Perco o emprego imediatamente.

III


Saio de lá antes mesmo do horário de almoço, ainda com a mancha de café sobre a minha melhor camisa social. Pelo menos a chuva de manhã havia parado, tendo apenas a luz forte do sol para ofuscar a minha visão.

Tento me acalmar enquanto caminho até a minha casa, mas com toda a certeza aquele motorista quis atravessar o carro bem naquela poça d'água para tirar sarro do otário aqui. Mesmo ensopado e sem dignidade, eu teria de continuar meu trajeto.

Quero chegar logo em casa. Tomar um banho quente e receber um abraço compreensivo da Eternamente Bela, dando-me os beijos mais gostosos para oferecer a maior sorte na busca do meu futuro emprego.

Volto a sorrir no meio da rua ao pensar nela, talvez por isso o meliante tenha me pego desprevenido. Entrego minha carteira e celular sob a ameaça de seu revólver na minha cara. Recebo um murro no rosto quando ele vê que tenho somente moedas na carteira e um celular flip vagabundo da Alcatel.

Teria como sorrir depois disso? Não sei mais, apenas tinha a certeza que tinha perigo de piorar, e assim aconteceu.

Para quem não sabe, nem sempre a calçada é renovada, mesmo no centro da cidade. Em um desses buracos um tonto atrapalhado como eu sempre acaba tropeçando. Talvez cair no chão nem seja um problema tão grande, já que eu tive que derrubar outra pessoa comigo, uma daquelas celebridades da web.

"Olha para que lado anda, arrombado!" foi a resposta daquele formador de opinião famoso entre os adolescentes.

A partir de então eu começo a gritar e correr o mais depressa possível para minha casa. Meu corpo começa a doer seriamente após o terceiro tombo. 

IV


Finalmente em casa. A única coisa em minha mente é reencontrar minha esposa e colocar tudo para fora.

Abraço-a fortemente e a encharco com o meu pranto. Ela me pergunta o que aconteceu e eu respondo com berros e soluços. Eu xingo a maldita vida ao expor ao meu amor minhas angústias. Minha voz soa esganiçada, as mãos tremem, e os olhos dela passeiam em suas órbitas ao tentar segurar o meu rosto, me impedir de por tudo para fora.

Ainda há muito para dizer, então continuo a lamentar sobre o seu corpo. Ela tenta me fazer ouvi-la, e eu a seguro em meus braços, pressiono mais forte. Seus braços ficam marcados onde eu aperto. Ela tenta se soltar, mas eu preciso desabafar tudo de uma vez.

Ela consegue repelir meus braços e começa a me sacudir. Sua boca distancia cada vez da minha ao falar alto, mais alto do que a minha voz. Os ruídos de nossas bocas impedem ambos de ouvir um ao outro. Eu só queria conversar com o meu amor, por que lobo do ódio dentro dela avança em mim?

Nossos berros me dão dor de cabeça, mas as palavras ainda estão inaudíveis. Enquanto o ruído aumenta, minha visão tem mais dificuldade em formar uma imagem. Não sinto mais seus braços, e sua voz cessa após um estrondo enorme. Com o silêncio presente a minha visão retorna, revelando a mim qual foi aquele barulho: o disparo de uma arma que acertou uma bala na cabeça de minha mulher.

Meus ouvidos recusam a ouvir alguma coisa, mas eu berrava. A Eternamente Bela era tudo para mim. A minha melhor conquista, a perfeita companheira, o meu eterno amor. E alguém a matou.

Seguro-a antes de seu corpo morto cair ao chão, minhas lágrimas escorrem junto com o sangue dela.

V


Em meus braços, ela ainda permanece bonita, a Eternamente Bela.

O cheiro de violeta ainda está lá. Pressiono minhas narinas para absolver mais daquela essência sobre sua pele, a última vez que sentirei ao cheirar o seu cangote.

Acabo inalando o sangue escorrendo pelo seu corpo. Seus olhos castanhos são preenchidos com o vermelho daquele líquido cruel, gosmento, cheiroso e saboroso de minha mulher.

O lobo do ódio com certeza teve sua fome saciada durante todo este dia. Mas isso não pode continuar, o amor deve vencer!

Mas como serei capaz de alimentar a fera do amor sem ela? A minha razão de viver, fonte de alegria, meu porto seguro.

Bom...

Não tenho condições de alimentar o lobo correto com sentimento após essa catástrofe, mas quem sabe eu posso fazê-lo literalmente?

Ponho minha boca no buraco aberto e comecei a sugar seu sangue. Nenhuma gota pingava de meus lábios, tudo o que meu amor puder me oferecer eu absolveria.

Em seguida pego a maior faca presente na cozinha e rasgo a carne sobre seu peitoral, revelando assim seu coração parado, pronto para ser consumido, e assim o fiz. Comecei a mastigar seu órgão. O que seria melhor para alimentar o amor senão o coração da minha amada?

Sou incapaz de sentir o sabor, mas continuo a mastigar, a arrancar pequenos pedaços e engolir aos poucos.

É preciso realizar a justiça. Vingar a morte dela por amor. Pego a herança de meu pai de calibre 38 e saio para a rua. 

VI



Ergo minha voz à vizinhança querendo resposta. Alguém deveria ter visto o responsável pelo disparo, mas ninguém se pronunciou.

Exijo uma resposta com o tom mais alto possível, e recebo apenas olhares de escárnio para o meu rosto ensanguentado.

Cuspo sangue na idosa mais próxima de mim, aponto minha arma para ela e demando a resposta. Ela pede a Deus misericórdia. A compaixão que ela recebe é um tiro na cabeça igual ao da minha esposa.

São cúmplices! Meus próprios vizinhos conspiraram contra a minha felicidade! Eles têm de morrer para preservar a pouca dignidade de meu amor. Eles precisam sofrer o que minha paixão sofreu.

Aperto o gatilho para os infelizes que avançaram em mim, acertando nas mais variadas partes do corpo. Faço a recarga da munição e atiro naqueles mais distantes, e acerto a metade dos disparos.

Sorrio amistosamente pelos furos feitos com a minha arma, do líquido vermelho expelido daqueles monstros. Aspiro fortemente o cheiro de urina, imaginando ser de meus adversários apavorados, mas na verdade é da minha própria calça cada vez mais molhada. Rio ainda mais alto.

Rasgo o pescoço dos que estão mais perto e mastigo sua carne. Uma carne morna, mas apetitosa. Os seios das mulheres desmancham em minha boca após a quarta mordida. As nádegas dos homens tinham um gosto peculiar, mas suas canelas eram formidáveis! Há muita gordura na barriga da maioria, ficando difícil de mastigar. Enfim, a vingança é realmente um prato que se come frio.

Quem sabe eu faça o mesmo no meu antigo escritório depois de terminar por aqui?

Devia ter feito isto há muito tempo. Os corpos estão sujos de sangue, alguns com tripas à mostra, enfeitando as calçadas com a cor que realmente representa essa cidade.

Isto é justiça divina, é um verdadeiro ato de amor! Eu fiz por você, minha vida! O lobo em meu peito está mais saciado do que nunca!

A maravilhosa sinfonia de berros e choros foi abafada pela sirene, com as luzes vermelha e azul piscando nos reflexos das poças de sangue. Agradeço por eles virem me ajudar a descobrir quem foi o assassino da minha esposa, mas os policiais apenas me prendem sem eu poder sequer me defender.

VII

Por quê? Qual o motivo de eu estar preso nesta cela com grades enferrujadas? Por que deixam um cidadão de bem enclausurado quando deveriam perseguir o verdadeiro mal?

Meus dedos sangram só de deslizar entre as barras de ferro. Pressiono minhas mãos na grade, puxo com toda a minha força, mas nada acontece. Com certeza contraí alguma doença raspando minhas feridas nesses ferros imundos.

Deveriam prender o assassino de minha esposa! Capturar todos aqueles vagabundos do jornal online! Deviam caçar o arrombado que pensa ser famoso só por ter milhões de seguidores na internet! Por que EU estou aqui!

Só poderia ser algum engano, preciso falar com eles. Basta apenas algumas palavras de bom senso para mostrá-los a verdade.

Eu começo: "Me escute, por favor", mas não há nenhuma resposta. Tento de novo: "Alguém pode me ouvir?" e me assusto.

Onde está a minha voz? Eu não consigo ouvir a minha fala. Minha boca se mexia, as palavras se formavam na minha mente, mas nenhum som saía.

"Nunca vi caso mais sinistro."

"Nem me fale. Não consigo entender o motivo de alguém sair pelas ruas e matar as pessoas em seu caminho, isto não é de Deus."

Não pode estar acontecendo. Eu não posso ficar louco neste momento.

Tecla. Tecla. Tecla.

Este barulho infernal de novo. Não há nenhum computador na cela, de onde está vindo isto?

"Com certeza não há motivo, ele é simplesmente maluco. Um demente desses nem deveria existir, e agora teremos de aturá-lo alguns dias até ser transferido para uma prisão. Espero que ele nem sobreviva."

"Vou fazer de tudo para esquecer esta tragédia. Os vizinhos que sobreviveram me falaram que ele era um homem de bem, que amava imensamente sua mulher e sempre a enchia de carinho. Então como do nada ele chega em casa mais cedo e mata a esposa com um tiro a queima roupa?"

Tecla. Tecla. Tecla.

"Não questione, Reginaldo. O caso já está encerrado. Apesar da tragédia, é um a menos nas ruas."

Por quê? Por quê? Por quê?

Cadê a minha arma? E onde está o corpo da Eternamente Bela? Espero que não esteja passando frio.

"É melhor deixar pra lá. Preciso relaxar, vou tomar um café."

Tecla. Tecla. Tecla.

Ah sim! Pessoas mortas não devem sentir frio. Mas por quê? Por que pessoas mortas não sentem frio?

"Isso mesmo. Tome um belo copo de café e depois vem pagar aquela pizza que anda me devendo."

Tecla. Tecla. Tecla.

Estou sentindo! Acho que consigo usar a minha voz agora:

"POR QUÊ?"

Sacudo meus braços na jaula, pressionando minha face nas barras de ferro até amassarem minha pele. A minha garganta pede água, e eu respondo com mais gritos. Logo minha força desaparece, e dobro os meus joelhos no portão de minha cela. Devia ter comido mais da carne de minha esposa. Precisava alimentar mais o lobo do amor.

"Combinado! Pizza garantida."

"POR...

"QUÊ!"

Diego de Araujo Silva, mundialmente conhecido como DiRock S. (Só que não), é formado tecnólogo em Análise e Desenvolvimento de Sistemas, aspirante a aprender sempre, gamer cada vez mais casual, e nerd como estilo de vida. Autor de contos no Wattpad, criador do blog XP Literário e está escrevendo um romance distópico chamado Artesãos da Tecnologia Anciã.
Epígrafe (praticamente meu mantra):

“Todo dia aprendizado 
Com certeza será válido 
Mesmo contra o que queira 
Aprendendo com a arte para lidar com as perdas” 
(Uganga)

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