Doce Espera: diário da mamãe e do bebê

[Contos de Setembro] Lave a Louça! por DiRock

Olá leitores,

Hoje se inicia as postagem Semana de Contos de Setembro. Escolhi o tema Suicídio por diversos fatores. Então deixe um lencinho ao seu lado e a mão na consciência.

Lave a Louça!


"Ai, inferno! De novo esta luz cai."

Não consigo publicar o décimo segundo dia do desafio deste jogo infernal. Quase fui incapaz de fazer a tarefa de ontem pelas constantes quedas de energia de madrugada.

Saio do meu quarto e a velha me manda lavar a louça, como se a queda de energia fosse premeditada a me fazer trabalhar.

Ela senta na mesa, espera eu colocar os copos no escorredor. As mangas da blusa ficam molhadas e resfriam meus braços nesta tarde ensolarada.

Não! Não há nada de refrescante nisso. É humilhante.

Ela começa a esfregar o pano nos copos. Repousa um por um na mesa perto da pia, depois ela os guarda de uma vez. O som do vidro ao contato da madeira é o único barulho no ambiente, o que é ótimo.

Começo a ensaboar os talheres. Essas novas facas compradas são uma porra, mal conseguem cortar uma banana. Eu trocaria este talher por uma gilete, se a velha não tivesse jogado tudo fora e me obrigado a pagar alguém pra fazer depilação. Ela dizia que eu me depilava demais.

"Agora que lavou as facas, filha, eu preciso conversar contigo."

O silêncio 'tava tão bom... Por que ela quer fazer o papel de boa avó?!

"Eu sei o que você faz de madrugada, e tem de parar com isso."

"Ai, vó! Todas da minha idade fazem isso." O esmalte velho desmancha com a água, mas eu não pretendo pintar as unhas outra vez. "E paguei aquele vibrador com o meu dinheiro."

"Não é disso que estou falando."

Ela pega o meu braço. A dor me aflige só pelo seu toque.

"Me refiro a isto." Aperta seu polegar com toda a força no meu braço.

Berro de raiva e de dor.

"Por que fez isso? Quer me livrar do sofrimento? Me mata logo!"

Solto o pote e esmurro os dois punhos contra a pia, mas o pulso direito acerta a quina da cuba. Tomo choque.

Porra, isso dói.

A velha pega na minha mão com cuidado, sem apertos.

"Não, filha. A morte não é uma solução. Deve parar de se machucar."

Ela ergue minha manga expondo todos os cortes de meus braços, os traços que formam o desenho de uma baleia.

Eu encaro o animal marcado na pele, meu olhar segue os braços de minha avó e fita o seu olho bom. Lágrimas percorrem os sulcos entre as rugas, e as minhas deslizam no meu rosto liso.

"Você sabotou a energia."

Não foi uma pergunta.

"Um de seus colegas de escola veio me avisar o que você andava postando na internet."

Mateus! Vou te matar antes de acabar com a minha vida!

"Eu achava estranho você ficar isolada aqui em casa. Pensei que suas respostas mal-educadas eram apenas fases da adolescência.

"Mas aquele menino abriu meus olhos quando me contou o que era este jogo da baleia azul e que você estava participando. Eu não quero te perder, filha!"

"Não sou sua filha."

"Meu coração adoeceu quando sua mãe morreu nas garras de seu pai. Você é a única filhinha que tenho."

"Caralho, não sou sua filha! Se minha mãe não tivesse me parido, ela ainda estava viva. Aquele escroto nunca a teria matado de raiva pela criança indesejada."

Quase me engasgo com o meu choro.

"Eu só trago desgraça à nossa família, deixa eu acabar com este sofrimento."

Ela me bate.

É assim que os velho são. Se não nos convencem, eles batem na nossa cara. Carimbam uma marca escrota de sua mão no rosto.

Agarra meus braços com uma força inimaginável. Balança todo o meu corpo e me desequilibra.

Caiu de joelhos e choro de novo.

Grito. Berro. Fico sem ar com a voz lançada do fundo da garganta. Os vizinhos devem pensar que minha casa foi invadida por um urso.

Calo minha boca após o segundo tapa.

"Acha que esta velha não vai sofrer ainda mais se estiver sozinha? Acha que estarei feliz de você partir antes de mim?"

Ela recolhe meus braços e os envolve em suas mãos. Um toque quente e gentil, sem causar dor.

Minha garganta dói.

"Se soubesse que seria assim eu jamais te contaria o resultado de meus exames."

O choro não para.

"Tenho pouco tempo aqui, minha filha. Você será órfã de uma família inteira, mas irá conseguir viver bem consigo. Não faça igual o seu pai. Não seja ingrata com a vida. Ocupe sua mente. Lave a louça, estude e trabalhe. Desenvolva esta pessoa incrível que é. Só não se machuque. Pare de sofrer."

Aperta minha cabeça contra seu peito murcho.

Não respondo. Não tenho a menor ideia do que dizer a ela.

Seu peito sob o meu rosto me conforta hoje. Mas eu vou perder isto.

"Você é tudo para mim, vovó. Não sei como viver sem você por perto."

Eu me isolei dela quando soube do seu tumor, de ela se tornar uma bomba-relógio prestes a explodir.

Os vagabundos dos meus crushes não podem substituí-la. Afeiçoei toda a vida na velha, por que viver depois dela morrer?

"Posso morrer, mas nunca largarei do seu coração, querida."

Toca no meu peito.

"Lembre-se sempre de mim, e estarei contigo por toda a eternidade.

"Faça-me este favor e viva. E lave a louça por mim."

Sorrio.

"Você e esta obsessão com louças."

"É tudo o que uma simples vó pode te ensinar."

"Muito bem, então tenho que terminar de lavar o que ainda está na pia."

Arregacei as mangas e terminei o meu trabalho. Já falei o quanto esta água refrescante na torneira é gostosa quando escorre em meus braços?

Arde um pouco por causa da espuma, mas é só por hoje. Não vou cortar minha pele novamente, e lavarei muita louça.

Roubei o pano da velha e terminei de secar. Coloquei tudo no devido lugar enquanto ela sentava próximo a mesa.

Caralho, minha avó ganharia o concurso do mais belo sorriso com esta face. Corro e pego meu celular para registrar este momento. Não vou postar no Instagram, mas sim guardar na timeline do meu coração.

"Agora se ajeite. Você tem manicure daqui meia hora, e o Mateus irá te levar num encontro esta noite."

O quê?! Ela já planejou tudo isso?

"Pelo menos o dele não é de plástico!"

"Vó!"

Espero que o vizinho não tenha ouvido essa.

"Eu te amo, minha filha. E você tem de permitir que o amor entre na sua vida."

"Também te amo, velha. E carregarei o amor comigo para sempre, num espaço reservado no meu coração ao seu lado!"

Diego de Araujo Silva, mundialmente conhecido como DiRock S. (Só que não), é formado tecnólogo em Análise e Desenvolvimento de Sistemas, aspirante a aprender sempre, gamer cada vez mais casual, e nerd como estilo de vida. Autor de contos no Wattpad, criador do blog XP Literário e está escrevendo um romance distópico chamado Artesãos da Tecnologia Anciã.
Epígrafe (praticamente meu mantra):

“Todo dia aprendizado 
Com certeza será válido 
Mesmo contra o que queira 
Aprendendo com a arte para lidar com as perdas” 
(Uganga)

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