Doce Espera: diário da mamãe e do bebê

[Contos de Março] No batuque do coração por G. J. Moreira

Olá leitores!

O que estão achando desse projeto de divulgação de autores nacionais através de contos? A nível de visualizações eu tenho acompanhado e me surpreendi bastante com as leituras, espero que estejam gostando também.

Concentração 


   Cátia olhou em volta e não acreditava, estava na Avenida Presidente Vargas às 3 horas da manhã segundo o relógio da Central. Isso poderia parecer loucura para qualquer carioca, mas era completamente normal se acrescentarmos que era uma segunda-feira de Carnaval. Na verdade, já era terça-feira, mas ainda estava no segundo dia de desfiles das escolas do grupo especial do Rio de Janeiro.

   A mulher estava na concentração da escola de samba Portela, também conhecida como majestade do samba por possuir vinte e um títulos do carnaval carioca, que, entretanto, estava há trinta e três anos sem colocar as mãos na taça da folia de Momo. A agremiação de Madureira estava se aprontando para o desfile, aquele carnaval marcaria a volta por cima de uma escola e de uma mulher. Depois de dois anos de casamento e de muitas brigas e discussões, Cátia finalmente estava livre para se divertir. Ela decidira em cima da hora que iria desfilar na escola de coração, precisando, assim, desembolsar uma boa grana para garantir um lugar no desfile que teve como enredo a narrativa entre os diversos rios do mundo, inclusive o rio poético de Paulinho da Viola.

   Ela procurou Fernando e Mariana, os dois eram seus amigos desde o colégio e tinham convencido à amiga e madrinha de casamento, que era preciso comemorar o fim daquele relacionamento que durara tempo demais. Os amigos sempre alertaram que Gabriel não era o melhor para Cátia, que ela se envolvera com ele apenas para tentar esquecer o homem da sua vida, mas a mulher afirmava que estava apaixonada e mergulhou em um relacionamento que estava fadado ao fracasso. Ela tinha esperanças que mudaria o homem com que se relacionava, mas percebera que isso era impossível, os dois eram incompatíveis. Até que a relação deles durara bastante, foram três anos, contando com um de namoro, para duas pessoas tão diferentes.

   Ainda não conseguira encontrar os amigos, mas isso era compreensível: a concentração de uma escola de samba era composta por mais de três mil pessoas fantasiadas das mais diversas maneiras, circulando entre carros alegóricos e tripés. Para uma pessoa de fora, parecia impossível organizar aquela quantidade de pessoas, mas tudo era muito bem ensaiado ao longo do ano. Isso fazia falta para Cátia, esse burburinho do carnaval estivera longe de sua vida enquanto estivera com Gabriel.

   A concentração de uma escola de samba eram os momentos anteriores ao desfile. Dependendo da ordem em que a escola desfilaria, ou seja, se for uma escola par ou ímpar, se concentraria em determinado lado da Avenida Presidente Vargas. As escolas que são a primeira, terceira e quinta se organizam do lado do prédio dos Correios ou da CEDAE, como era o caso da Portela, e as escolas pares, do lado do edifício Balança Mas Não Cai.

 — Cátia, aqui, mulher! — Era uma voz distante, mas que, com certeza, seria de Mariana.

 — A gente conseguiu umas cervejas! — disse Fernando, mostrando as bebidas.

 — Gente, pelo amor de Deus, abaixem isso, nós não beberemos se algum diretor de harmonia vir a gente assim.

 — Mas ainda não começou o desfile. — Foi a resposta de Mariana.

 — Nós já estamos no curral, eu disse para a gente beber do lado de fora, mas vocês não quiseram — comentou Cátia.

   A parte onde os três amigos estavam era gradeada, permitindo apenas o acesso dos componentes da escola que desfilaria a seguir e era denominada de curral. Isso era extremamente necessário, pois havia muitas pessoas circulando pelo entorno da Sapucaí para vislumbrarem um pouco do que seria o desfile das grandes escolas. Infelizmente, nem todos possuíam posses para comprarem os ingressos, então, muitos se contentavam em cruzar a Presidente Vargas observando os carros ou assistindo tudo pelo setor zero, que eram arquibancadas montadas do outro lado do canal do mangue fedorento, sendo gratuitas e altamente disputadas pelo povão, mesmo que isso significasse passar a noite aturando o mau cheiro do canal.

 — Vamos beber logo, Nando! — pediu Cátia, seca por uma bebida gelada, pois apesar de achar sua fantasia belíssima, não podia negar que era bem quente.

 — Amiga, estão começando a passar os ritmistas, será que o Fabrício está ainda aqui na Portela? — questionou Mariana.

 — Não sei. — Cátia respirou fundo, ainda sentia alguma coisa ao ouvir o nome dele. Ela e Fabrício haviam tido um relacionamento, de muitas idas e vindas, que durava até um pouco antes dela conhecer Gabriel, mas a vida os afastara. Secretamente gostaria de vê-lo novamente, mas sabia que três anos podiam mudar completamente uma pessoa.

 — Será que ele ainda está solteiro?

   Mariana fez um dos questionamentos que passavam pela cabeça de Cátia. A foliona esperava que sim, mas não tinha nem certeza se o homem desfilava pela escola, por que estava desejando tais coisas? Ela mesma havia casado e separado. Talvez Fabrício também tivesse feito a vida com alguém.

 — Pare de enfiar minhocas na cabeça da Cátia, Mari. Ela veio para curtir o carnaval. Vamos olhar a escola e tirar algumas fotos antes de mandarem a gente formar.

 — Isso mesmo, Nando. Quero ver a águia, disseram que está linda. A propósito, a escola está toda luxuosa, vocês não acham? — desconversou Cátia, evitando pensamentos em determinado ritmista.

   Os amigos saíram do local destinado à ala do Rio Nilo, que era o nome da fantasia dos três, feita em dourado e verde, com detalhes em penas azuis. Eles desfilariam em frente ao segundo carro, que representava o próprio Rio Nilo. Segundo alguns, seriam pessoas colocadas nas canoas do rio vertical presente no carro, mas, por questões de segurança, foram colocados manequins vestidos de egípcios. Em um carnaval com tantos problemas com carros alegóricos, a Portela largava na frente priorizando a segurança dos foliões. 

   O trio foi em direção ao abre-alas portelense, um carro alegórico todo em dourado, que representava o reino de Oxum. Cátia parou quando viu o carro de frente: era lindo! A águia era belíssima, pois possuía detalhes em LED nas asas e carregava o pavilhão da escola em suas patas. O coração da mulher disparou, era uma emoção indescritível estar ali presenciando aquele carnaval de uma de suas paixões. 

 — Ainda se emociona assim, morena? — Uma voz perguntou.

   Cátia olhou para o dono da voz, mas sabia quem era, só uma pessoa a chamava de morena:

 — Brício?! — Ela olhou para o homem à sua frente, ele continuava uma perdição: negro, alto, sorriso radiante e cabelos com dreads em azul e branco. Cátia achou que estava no céu, pois aquele era um verdadeiro anjo.

 — Claro, morena. Eu sempre estive aqui, você que foi embora. — Piscou Fabrício, ainda sustentando um sorriso encantador que fez Cátia quase desmaiar. Ela tinha uma memória péssima, suas lembranças não faziam jus ao homem que estava na sua frente. — Você está sozinha?

 — Não! Nando e Mari estão comigo. — Ela olhou em volta, procurando os amigos, mas não os viu.

 — Só eles? 

   Ela sabia de quem ele queria saber: Gabriel. 

 — Sim, só eles. Eu e Gabriel terminamos.

 — Ótimo saber disso. — O coração de Cátia começou a bater mais rápido do que uma bateria com essa simples frase de Fabrício. — Você não vai me dar um gole da sua cerveja?

   “Querido, eu dou tudo para você” — pensou Cátia, balançando a cabeça para afastar tais pensamentos.

 — Não?

 — Não, quer dizer, sim. Toma aí.

 — Você está bêbada, morena? Você acabou de negar e agora fala sim. Sabe que os diretores não deixam desfilar assim, né? Ou você passou tanto tempo longe que esqueceu? — Havia um pouco de mágoa na voz do homem.

 — Não estou! Eu sei que isso aqui é sério, essa é a primeira cerveja que bebo. — Ela ofereceu a lata ao ritmista.

 — Então me diga, o que estava pensando? — questionou Fabrício, encarando-a longamente antes de beber um gole da bebida.

   Ela pensou em ignorar a pergunta de Fabrício, mas pensou que faria tudo diferente dessa vez, então ousou a responder:

 — Que estou doida para experimentar essa sua boca gostosa!

 — Engraçado — ele baixou a lata da cerveja e a encarou —, eu pensei o mesmo desde que te vi.

   Com isso, os dois se aproximaram, ele vestido de pescador e ela, de Rio Nilo. Não havia muita liberdade de movimentos da parte dela, principalmente por causa do esplendor, mas a roupa dele, por ser mais simples, fez com que os dois tivessem aquele contato há tempos desejado.

   Fabrício a envolveu pela cintura e colou os lábios com os de Cátia. Parecia que uma faísca acendera na mulher, ela puxou o homem pelo pescoço e acabou com o espaço entre eles. O beijo era cheio de saudade, luxúria, carinho, desejo. Tudo ao mesmo tempo. Por um momento, Cátia esqueceu onde estava e simplesmente aproveitou para explorar a boca daquele homem tão perfeito. Nem parecia que o tempo tinha passado, o fogo deles estava vivo e queimando.

   Até que a sirene tocou.

Desfile


   Os dois se afastaram um tanto relutantes, mas ambos sabiam que era preciso. Era a sirene indicava que a Portela poderia fazer o esquenta da bateria em frente ao setor um.

 — Eu tenho que ir, morena. Na verdade, eu quero ficar com você, mas...

 — Nós temos um desfile pela frente. E, com certeza, vamos fazer a nossa Portela campeã — comentou Cátia, passando a mão pelo rosto de Fabrício.

 — Isso não vai ser apenas um beijo de carnaval, morena, vai? — suplicou Fabrício, olhando fixamente para a mulher.

 — Claro que não. O nosso carnaval só está começando, Brício.

 — Te encontro na dispersão, do lado do relógio. 

 — Sim, como da primeira vez.

   Os dois haviam se conhecido em um desfile, há quinze anos. Ela vestida de índia, componente do primeiro carro alegórico, e ele, na bateria, tocando repique. Na época, apenas ficaram. Foram uns dez anos de uma amizade colorida até assumirem namoro, que durou apenas dois anos.

 — “Meu coração está em festa/Enlouqueceu/No seu rio mar” — cantarolou Fabrício o samba portelense de 2002, ano do primeiro encontro do casal.

 — “Meu rio azul vai desaguar/Sob o verde desse olhar/O Ajuricaba seu canto ecoou” — completou Cátia, dando um selinho antes de se afastar do homem.

   Fabrício colocou o chapéu e foi em direção à bateria. Foram apenas alguns passos para ele ser engolido pela multidão e sair das vistas de Cátia. Um pouco depois, ela viu a amiga correndo em sua direção:

 — Amiga, que beijão foi aquele? — falava animada Mariana.

 — Foi daquele de abalar as estruturas, isso sim.

 — Me agradeça, Cátia. A Mari, tapada, nem tinha visto o Brício e ia interromper vocês — esclareceu Fernando.

 — O que seria de mim sem você, Nando. Ganhei meu carnaval — Cátia abraçou o amigo, ou, pelo menos, tentou, pois os dois ficaram presos por causa dos esplendores.

 — Mari, solta a gente! — implorava Fernando.

 — Quem mandou me chamar de tapada, Nando? Isso é castigo divino.

 — ‘Bora, Mari, a escola já vai andar — suplicou Cátia, sendo atendida pela amiga.

   O trio voltou para o lugar correto deles no desfile, recebendo uma bronca do diretor de harmonia, mas nada disso tirava o sorriso do rosto de Cátia. Agora era o momento de ela aproveitar o samba, mas pensava que nunca na vida quisera tanto chegar à Apoteose e encontrar determinado ritmista ao lado do relógio.

   A escola ganhava vida ao virar o joelho da Presidente Vargas. Só quem desfilava sabia qual era a sensação ao cruzar a Avenida Marquês de Sapucaí. Existia algo além da nossa compreensão que ocorre naqueles setecentos metros. Um ano de trabalho é posto à prova na pista de desfile e vitórias e derrotas ocorriam ali dentro: efeitos planejados que saíam conforme o estipulado, carros que não queriam fazer a curva, casais de mestre-sala e porta bandeira dançando divinamente, componentes de comissão de frente que caíam na apresentação do jurado. O desfile de uma escola de samba era um caleidoscópio de emoções. 

   Cátia se benzeu quando fez a curva, lembrando-se do que sua mãe dizia, era preciso pedir às forças divinas por um excelente desfile. Ela olhou para o setor um e sentiu o corpo arrepiar ao perceber que estava de novo em seu lar. Sim, ali fora seu lar por muito tempo e agora ela estava de volta para casa. As emoções eram conflitantes, queria chorar, sorrir, gritar, rir. Como ela pudera ficar tanto tempo longe daquele mundo.

   A mulher acenava para o setor um, mesmo não tendo ninguém conhecido por lá, mas o fazia, pois sabia que ali estavam alguns daqueles que amavam tanto o samba quanto ela. Os ingressos do setor um eram distribuídos gratuitamente para as comunidades das escolas de samba. Na prática, alguns revendiam esses ingressos, mas aqueles que compravam também eram aficionados pelo mundo do samba. Ela muitas vezes assistiu os desfiles naquele setor do povão com sua família.

   O samba portelense ecoava na Avenida e enchia o coração de Cátia de alegria, ela olhou para o lado e viu os amigos chorando e rindo. Sim, era emocionante vivenciar aquele momento: 

“Cantam pastoras e lavadeiras pra esquecer a dor

Tristeza foi embora, a correnteza levou

Já não dá mais pra voltar (ô iaiá)

Deixa o pranto curar (ô iaiá)

Vai inspiração, voa em liberdade

Pelas curvas da saudade”

   A ala do Rio Nilo agora passava em frente ao primeiro recuo de bateria e Cátia conseguiu ver o intérprete Gilsinho, com seu terno cinza elegante, acompanhado da equipe do carro de som cantando bravamente o hino da Portela. Pôde sentir o suingue da Tabajara do Samba, alcunha dada para a bateria da Portela. Infelizmente, não conseguiu ver quem ela mais queria. Afinal, Fabrício tocava repique e esse instrumento não ficava na dianteira da bateria.

   Cátia resolveu se entregar ao cortejo carnavalesco cantando a plenos pulmões o samba-enredo e sambando como se fosse a própria rainha de bateria. Ela interagia com as frisas e as pessoas das frisas com ela. Eram acenos e beijos jogados aprovando sua performance sambista. Mariana e Fernando também dançavam com bastante alegria e esse momento era de consagração da amizade dos amigos. Quando a apoteose se aproximava, Cátia sentiu a tristeza do desfile terminar e a alegria do reencontro com Fabrício começar. Ao mesmo tempo, queria ficar mais na avenida e também correr para alcançar o relógio da dispersão.

“Vem conhecer esse amor

A levar corações através dos carnavais

Vem beber dessa fonte

Onde nascem poemas em mananciais

Reluz o seu manto azul e branco

Mais lindo que o céu e o mar”



   Esses foram os últimos versos ditos por Cátia ao ultrapassar a faixa de fim de desfile. Os diretores de harmonia indicavam que os componentes de alas fossem para o lado esquerdo da dispersão, mas ela puxou os amigos e ficaram em frente ao setor treze, ainda na Praça da Apoteose, para curtirem mais um pouco do desfile. Mariana aproveitou e pegou um copo de água com os caras da CEDAE que a distribuíam após o desfile. Eles viram um pouco do desfile da agremiação até serem gentilmente retirados do local.

 — Amiga, você vai embora com a gente ou já tem outros planos? — perguntou Mariana, dando um sorriso maldoso.

 — Mari, depois você não quer ser chamada de tapada, é claro que ela vai esperar o Brício! 

 — Tudo bem, eu só quis ser educada, amor. Aonde vocês vão se encontrar?

 — No relógio.

 — Como na primeira vez? Ai, que romântico! Nando, por que você não é assim?

 — Porque a gente se conheceu no fórum. Você quer marcar um encontro lá? — Fernando e Mariana eram advogados.

 — Nando, você é o melhor. Amigos, amo vocês, podem ir tranquilos, pois meu carnaval apenas começou.

Dispersão


   Cátia se despediu dos amigos assim que passaram pelo portão da Apoteose. Ela agora estava sozinha no curral da dispersão e foi em direção ao bendito relógio. Sozinha entre aspas, pois havia uma multidão saindo do desfile. Teria que esperar um pouco, pois a bateria, geralmente, era a última ala a cruzar a linha de fim do desfile.

   Ela observava o movimento no entorno, baianas retirando suas roupas para serem colocadas no caminhão, foliões rindo, outros indo embora. Havia ambulantes esbravejando o preço de alguma falsa promoção de bebidas, afinal, todos cobravam a mesma coisa. Também via diretores de harmonias, em vão, tentarem organizar o caos na dispersão. 

   Do outro lado da dispersão, os carros alegóricos eram manobrados, já sem as pessoas, para outro cortejo: esse silencioso, que ia da Praça da Apoteose até a Cidade do Samba. O carnaval tinha seu brilho apenas nos setecentos metros da Avenida Marquês de Sapucaí, fora dali era apenas o caminhar de componentes cansados carregando suas fantasias e de trabalhadores do barracão preocupados em transportar com segurança as alegorias para o barracão, afinal, todos tinham a esperança do retorno da Portela ao desfile das campeãs. De preferência, em primeiro lugar.

   Cátia resolveu tirar a roupa do desfile, pois dessa vez que dar um amasso de verdade em Fabrício. Apesar de estar afastada do mundo do samba, a mulher ainda sabia os truques: guardara o famoso saco preto embaixo da fantasia para poder colocar o esplendor e chapéu depois do desfile. Ela iria com o restante da roupa para onde Fabrício quisesse. Depois se livraria do restante se tudo ocorresse conforme planejado.

   Para muitos deveria ser estranho tirar a roupa no meio da rua, mas, no carnaval, isso era comum, as pessoas se desfaziam das roupas de rainhas, índias, príncipes e guerreiros para se tornarem apenas pessoas comuns novamente. Os momentos de ilusão aconteciam apenas no desfile, onde uma simples faxineira tornava-se uma rainha egípcia ou um vendedor transfigurava-se em super-herói. Essa era a magia do carnaval, modificar a vida das pessoas por setenta e cinco minutos para contar uma história.

   Depois de guardar os itens indesejados, Cátia percebeu que o desfile da Portela chegava ao fim, pois ouvia a bateria cada vez mais próxima. Seu coração deu um salto e ela sabia que isso tinha dois motivos: o suingue da Tabajara do Samba e a presença de determinado percursionista de repique. Apesar de o desfile estar terminando, a dispersão continuava cheia, todas as alas saíam por aquele lado, e como os integrantes das alas finais sabiam, a bateria vinha atrás encerrando o cortejo apenas com o batuque, já que o carro de som havia sido desligado.

   A mulher resolveu esperar no ponto marcado, sambando ali em cima do que um dia fora um canteiro de grama. Dali via o caminhão responsável por recolher os instrumentos da bateria. Era impossível reconhecer Fabrício, pois eram uns duzentos ritmistas trajando vestes de pescadores e ela estava ansiosa para revê-lo. Resolveu comprar uma água para conseguir se livrar do ambulante insistente que gritava em seu ouvido, até que ouviu:

 — Misturando bebidas, morena?

 — Deus, de onde você veio, Brício? 

 — É segredo, querida, se eu... — disse ele, piscando para a mulher à sua frente.

   Ela não esperou ele completar a frase e o atacou ali mesmo. O beijo dessa vez era mais urgente do que na concentração. Dessa vez, ela não queria interrupções. Nada de sirenes ou horário de desfile, agora eles poderiam curtir o carnaval a dois até o sábado das campeãs. Talvez, quem sabe, até depois disso.

   Fabrício se aproximou de Cátia, a escorando na coluna do relógio e aprofundando o beijo. Tudo aquilo era uma mistura de saudade, carinho e desejo. Eles continuaram a devorarem um ao outro até que o ar faltou e tiveram que se afastar:

 — Temos que ir embora, Cátia.

 — Por quê?

 — O pessoal da LIESA virá aqui nos expulsar se continuarmos aqui, daqui a pouco já tem gente da Mangueira chegando aqui. — A Mangueira era a última escola a desfilar no segundo e último dia de desfile do grupo especial.

 — Tudo bem, mas nós vamos para onde, Brício?

 — Para onde você quiser, morena. Sou seu até à noite.

 — Como assim? O que você tem de noite?

 — Desfile lá em Intendente. — A Estrada Intendente Magalhães era o local dos desfiles das escolas de sambas dos grupos B, C, D e E.

 — Sim, verdade. Vamos então, pois temos muito o que matar de saudade. E, se prepara, você não vai dormir!

 — Quem disse que eu quero dormir, morena?

   Com isso, o carnaval fez com que dois foliões perdidos se encontrassem e pudessem dividir o restante da folia juntos: eles foram assistir e desfilar em algumas escolas do grupo B, na terça. Na quarta, foram para quadra da Portela, em Madureira, para acompanharem a apuração. Com a divulgação do resultado, que consagrou a escola de Madureira campeã, os dois resolveram que queriam a companhia um do outro não apenas por alguns dias de folia, para o resto do ano e nos próximos carnavais. Quem imaginou que uma atitude impulsiva de Cátia poderia trazer de volta aquele que sempre fora o amor da sua vida e companheiro de todas as folias?

G. J. Moreira nasceu no dia 8 de março, sábado das campeãs do carnaval de 1988. Como o mundo não estava preparado para alguém tão apaixonada por carnaval, não houve esse desfile e sim, uma chuva torrencial no Rio de Janeiro. Gabriella se define como uma metamorfose ambulante que a cada dia rompe preconceitos para se tornar uma pessoa melhor, além de ter o carnaval como estilo de vida e o deboche como arma para sobreviver nesse mundo doido.

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