Doce Espera: diário da mamãe e do bebê

[Contos de Março] Miss Columbia por Goldfield

Quem gosta de super herois?

Olá leitores,

Esse conto é fantastico, e se você gosta de super herois a moda Capitão América, você vai adorar conhecer a Miss Columbia e a história do mundo e o pós guerra narrado por ela.

Miss Columbia


Olá. Não sei muito bem como iniciar um texto como este, confesso. Criar os slogans de propaganda, afinal, nunca foi meu encargo. Eu apenas os representava.

Eu já sei o que você deve estar pensando. Não preciso ser telepata para deduzir isso – embora eu conheça alguns caras que poderiam virar seu cérebro do avesso se quisessem. Bem, a questão é que você acha que escrever algo assim em primeira pessoa é um clichê do tamanho de um bombardeiro B-52. Acontece que, como disse, não sou boa nisso; e se meu relato tem por objetivo justamente narrar situações pessoais – num desabafo ou não, você decide – , não pode haver melhor maneira de fazê-lo se não por uma narrativa cheia de pronomes no início do singular. Quer ler experiências fantasiosas que seus autores nunca viveram, em livrinhos bonitinhos escritos de cabo a rabo por alguém que vê tudo de fora, na terceira pessoa, fuja deste texto. Eu aqui só falo a verdade.

Acho que deveria começar me apresentando, não é mesmo? Chamo-me Mary Ann Flint. Nasci na Filadélfia, Estados Unidos da América, no dia 15 de junho de 1922. Mas não se engane: essas informações dizem bem pouco sobre mim. Ou melhor, nada dizem, pois Mary Ann Flint, da maneira como veio ao mundo, jamais foi alguém. Ela não se tornou conhecida por ir bem em aritmética no primeiro grau, ou por ser ridicularizada por todas as outras garotas da vizinhança em que morava. Para que possa compreender o porquê de minha pessoa um dia ter tido alguma relevância, é preciso que eu antes explique o que acontecia na época.

O ano era 1942. Meu país acabara de entrar na Segunda Grande Guerra depois que os japoneses atacaram traiçoeiramente – ou não tão traiçoeiramente quanto querem que acreditemos – a base naval de Pearl Harbor, no Havaí. O Tio Sam mobilizou-se todo para o confronto, armas e tropas sendo preparadas para que a navalha da liberdade democrática desse uma bela raspada no bigodinho de Hitler. O que poucos sabem, ou fingem ignorar, é que o esforço de guerra assumiu proporções jamais imaginadas quando foi de encontro ao progresso científico da época. Certos resultados desse casamento, como o Projeto Manhattan e a infame bomba atômica, são notórios publicamente; mas nem todos falam das experiências físicas e genéticas realizadas no mesmo período, quando supersoldados de estrelas no peito e alienígenas de capas vermelhas lutaram contra o Eixo pelo “american way”.

É aí que entra Mary Ann Flint. Antes de a guerra eclodir, trabalhava como modesta enfermeira num hospital da Costa Leste. Sempre tímida, mirrada e retraída, cabelos presos sob o chapéu branco e olhos encarando o chão por trás dos grandes óculos quadrados, a jovem de vinte anos não despertaria desejo nem mesmo num virgem em estado terminal. Assim que Roosevelt declarou guerra à Alemanha, a amedrontada Mary temeu ser enviada aos campos de batalha europeus – porém viu-se logo aliviada pelo convite de um médico que lhe era conhecido. Graças à competência que manifestava no trabalho – e ainda que não possuísse qualquer outro tipo de graça – Mary Ann foi convidada a tomar parte numa equipe cuidando de um experimento secreto do governo em próprio solo americano. Mais uma tentativa de criar um combatente invulnerável e idealista, como ela mais tarde viria a descobrir. A ocupação era bem simples: servir como mera assistente de laboratório.

Deve agora se perguntar por que me propus a narrar esta história em primeira pessoa se me refiro a Mary Ann na terceira. Posso dizer que, após aquela oportunidade de emprego, a tal moça – ou seja, eu – jamais foi a mesma. Ela se tornou o que sou hoje.

Quem esperaria que a estabanada enfermeira acabasse, na manhã do grande experimento, tropeçando e injetando em si mesma a seringa com o tal soro de supersoldado, ganhando para si os poderes destinados ao militar cobaia?

De início achei que fossem me matar. O cientista-chefe parecia tão nervoso que acreditei que ele era quem manifestaria superpoderes, derretendo-me com seu olhar cheio do fogo do ódio. Após o choque inicial, que me levou pouco depois a desmaiar – também por medo – , despertei numa cama de hospital com o mesmo médico conhecido explicando quais mudanças ocorreriam em meu corpo: meus músculos aumentariam, desenvolveria força e agilidade sobre-humanas, teria os cinco sentidos mais aguçados já vistos e assumiria a posição de modelo ideal para qualquer dona-de-casa da América em guerra.

Nascia, naquele dia, a Miss Columbia.

Desde aquela época já sabia que uma super-heroína era algo que os figurões de Washington jamais esperavam – tampouco desejavam. O que eles queriam eram esposas obedientes trabalhando para abastecer a nação sem pensar em seus amados do outro lado do oceano; e não mulheres fortes e determinadas dispostas a combater nas trincheiras ao lado de seus cônjuges. Uma garota com superpoderes, no entanto, estava ali, e o Tio Sam tinha de trabalhar com o que tinha. Deram-me um uniforme “pin-up” nas cores da bandeira e meu codinome tomou, como inspiração, a figura feminina que tradicionalmente personificava os Estados Unidos. Eu talvez achasse que “Miss Philadelphia” soaria igualmente patriótico e mais de acordo com minha terra natal, cuja proteção julgava motivo real de minha luta; mas transformar a coisa toda num “concurso de miss” não ajudaria muito, tampouco agradaria o senhor Roosevelt...

Lutei em Guadalcanal, El Alamein e Normandia. Tomei chá diversas vezes com o britânico Montgomery, e sempre achei os cãezinhos dele uma graça. Quando os Aliados retomaram Paris, cantei no Moulin Rouge para as tropas. Até mesmo passei noites frias no front junto ao Reno, os soldados brincando sobre Hitler querer sair de Berlim para dar uma espiada mais de perto em minhas curvas, o que apressaria o fim da guerra. Aliás, minhas curvas foram a imagem sempre mais explorada nas centenas de vídeos de propaganda que protagonizei. Os direcionados aos combatentes costumavam ter um ar de “já que até uma mulher se arrisca contra o Eixo, não seja um maricas e lute também!”; enquanto o material doméstico, exibido nos cinemas da América, instigava as mulheres a terem força – cuidando de seus lares, família e sem jamais deixarem de contribuir com seu trabalho para que os inimigos fossem derrotados.

O conflito avançou, os malvados recuaram, e nos idos de 1945 tudo estava acabado...

Para mim também, como logo descobri.

Alguns sortudos tiveram a sorte de morrer como heróis em campo de batalha ou encontrar destinos bizarros como o congelamento no Ártico. No entanto os superseres remanescentes mostraram-se um problema não só para os EUA, mas também aos demais Aliados e até países do Eixo, já que os ianques não haviam sido os únicos a brincar com fórmulas secretas. Assinados os tratados de paz, cada nação tinha no mínimo meia dúzia de “anormais” para lidar. E a grande verdade era que nenhum governo sabia o que fazer com eles. Outro ponto em comum, também, logo se mostrou notório: os diligentes viram todos como ameaça em tempos de paz, não importando o quanto houvessem auxiliado seus países poucos meses antes.

Lembro-me como se fosse hoje: tendo há pouco retornado à minha cidade natal, tomava um milk-shake com antigas colegas do colégio, ouvindo sugestões sobre como explorar minha identidade heróica agora que me encontrava de novo em casa. Alguns dos heróis dedicaram-se ao combate ao crime – leia-se “caça aos comunistas” – pouco tempo antes de a histeria começar, e isso lhes garantiu uma liberdade vigiada. Tivesse eu pensado nisso a tempo, e aqueles homens de terno e óculos escuros não teriam invadido a lanchonete, espancado minhas amigas e me botado para dormir com o clássico lenço embebido em clorofórmio. Poucos sabem que usar essa substância assim contra uma pessoa normal pode levar à morte imediata, mas eu era mais que humana. O ardil, portanto, foi suficiente para que eu adormecesse por algumas horas.

Acordei a bordo de um avião militar, os motores zumbindo dentro de minha cabeça. As janelas vedadas me impediam de ver para onde era conduzida, dois soldados carrancudos cuidando para que eu não tentasse qualquer gracinha. Levavam-me para meu novo lar, um lugar onde não poderia causar problemas. A Miss Columbia, tão adorada heroína propagandística da guerra, tornara-se prisioneira de seu próprio governo. Podiam ser inúmeros os motivos de Washington não depositar em mim qualquer confiança; mas um, tão antigo quanto a civilização, por certo mais pesava: eu era mulher. Todos os outros superseres que serviram ao Tio Sam eram homens.

Pousamos no meio de um extenso deserto, impossível de identificar e com o sol escaldante turvando-me ainda mais a visão. O local podia estar no meio de Nevada ou no vazio gigantesco do interior australiano: jamais saberia. Nem eu, nem ninguém que pudesse me livrar daquela situação. Cedo deduzi que meu destino era ser simplesmente... esquecida. Assim como outros infelizes supersoldados que um dia acreditaram estar fazendo o melhor por suas pátrias...

A aparência da “cidade” era até amistosa, embora os altos muros e as torres de guarda não deixassem enganar ser aquilo uma prisão. As ruas se estendiam por agradáveis quarteirões de sobrados brancos de madeira e grama verdinha bem-aparada, num fiel retrato dos subúrbios norte-americanos do pós-guerra. Esse aspecto provavelmente originara o apelido do lugar: “Suburbia”. A denominação era bem mais agradável que o real nome, que descobri algum tempo depois como sendo um pouco atraente conjunto de siglas e números – epitáfio de nossa tumba.

Visitara um campo de testes de armas nucleares pouco antes do fim da guerra e o cenário de início muito me lembrou um, com suas residências idealizadas repletas de bonecos representando pessoas – o que me fez imaginar se o plano dos governos não seria explodir todo o local com uma ogiva nuclear para testar que efeitos a radiação teria em aberrações como nós. Minhas suspeitas, porém, logo se esvaíram, depois que o veículo blindado que até ali me transportara se foi e acabei deixada à própria sorte sozinha numa viela. Deveríamos simplesmente apodrecer ali. Sinceramente, não sei qual destino seria pior. Eu, hoje, talvez houvesse preferido a bomba...

Meus colegas de infortúnio não tardaram a se manifestar, surgindo timidamente das sombras como espectros envergonhados. Alguns deles, realmente, possuíam motivo em se acanhar, já que nem todas as mutações que haviam sofrido eram tão benéficas quanto a minha. Cedo fiz amizade com Leonid, um jovem soviético que participara de um programa experimental para se criar o “Novo Homem Socialista” através da genética. Os burocratas do Kremlin queriam inserir no cérebro do rapaz ideais como solidariedade e desapego; mas conseguiram apenas inchar-lhe a cabeça até se parecer com um disforme tomate repleto de caroços e veias salientes, sendo obrigado a usar um implante de metal em torno do pescoço – ligado aos seus ossos – para que conseguisse sustentar tamanha massa sobre os ombros. Claude, o francês, fora capturado pelos nazistas no início da guerra e enviado ao subsolo de um dos castelos isolados na Alemanha onde os homens da Ahnenerbe realizavam os mais torpes experimentos em judeus e prisioneiros inimigos. Diversas incursões dolorosas à sua mente lhe garantiram de início a capacidade de captar pensamentos superficiais daqueles que o rodeavam; mais tarde tornando-se, gradualmente, exímio telepata. Sim, ele é uma daquelas pessoas que citei no início do texto.

Deve imaginar que esses outros dois “filhos da guerra” eram poucos daqueles que eu poderia chamar de “amigos”. A verdade era que, na realidade de Suburbia, ninguém tinha amigos. Éramos todos, no máximo, companheiros de sobrevivência. E, infelizmente, havia muito mais gente querendo alguém morto do que mais uma boca para dividir a escassa comida enviada, quando em quando, de pára-quedas pelos aviões que ali sobrevoavam...

O russo e o francês, ambos tendo ouvido antes falar de mim e sendo há algum tempo relativos admiradores de minha persona heróica, explicaram-me logo as regras da cidade-prisão. A vontade dos governos envolvidos naquela iniciativa era que todos nós nos matássemos, sendo assim inexistente a mais pálida forma de jurisdição de suas partes sobre aquele local – com exceção de metralhar qualquer prisioneiro que tentasse dele fugir. Fosse nas agradáveis ruas de classe média ou nos becos entre as lojas que na realidade não vendiam produto algum, só existia um legislador em Suburbia: Darwin. Ali prevalecia o mais forte.

Quem se impusera desde o começo sobre os demais superseres, por sinal tendo sido um dos primeiros enviados à cidade, era a ex-cobaia de experiências nazistas chamada apenas de “Königin”. Uma mulher, como eu, que adquirira super-habilidades como força além do comum e percepção aguçada. Sua história, no entanto, era menos acidental: comentava-se em sussurros que a dama de duras feições e cabelos ruivos assassinara o esposo cientista para dele roubar a fórmula que a transformou no que era. Vestindo sempre o resto de um uniforme da SS com as mangas cortadas, a “comandante” não oficialmente nomeada de Suburbia exibia nos dois braços brancos como cera tatuagens de suásticas e caveiras; de modo que as próprias figuras aparentavam afugentar quem chegasse perto demais da alemã, sem que ela precisasse fazer uso de seu conhecido olhar fuzilador. Marchando firme com suas botas de cano alto, era acompanhada sempre de dois capangas leais: um britânico gordo chamado Tyrell, capaz de vomitar ácido; e o iugoslavo Luka, vítima de um teste conjunto de nazistas e soviéticos, antes do conflito, que lhe dera a capacidade de liberar grandes descargas elétricas à custa da explosão de toda uma base e uns 70% do corpo queimado. O trio era emblema de como a vida em Suburbia levava a estranhas alianças; e também grupo que qualquer aberração, não importando quem fosse, deveria respeitar – se ainda mantivesse algum juízo.

A rotina em meu novo lar aos poucos me foi apresentada. Descobri no mesmo dia em que cheguei que a principal atividade constituía a busca por comida – a qual era rigidamente racionada por Königin, salvo alguns poucos pacotes extraviados a partir da encomenda aérea que caíam nas mãos de patifes cobrando caro por eles. Não exigiam dinheiro nem jóias, já que isso pouca serventia teria dentro dos muros. Interessavam-se, ao invés disso, por formas de fazer o tempo passar mais rápido como raros livros e revistas, jogos de tabuleiro ou, em alguns casos, objetos de estima pessoal – isso quando não optavam por prazeres imundos e momentâneos. Alguns desses agiotas de Suburbia possuíam seu próprio concubinato. Cedo quiseram me arrastar para tal condição, assim que pousaram os olhos em meu corpo. Tiveram, no entanto, braços quebrados e faces inchadas antes que pudessem sentir qualquer afago entre as pernas.

Ignorei os avisos de Leonid e Claude ao reagir, e acabei aprendendo a duras penas o podre funcionamento daquela cidade: até então eu vivera apenas do lado de fora, onde meus poderes eram dados como únicos, sem que houvesse esbarrado em qualquer outro prodígio durante a guerra. Tinha em mente ser superior a todos que me cercavam. A lógica, ali, mostrava-se outra: outros prisioneiros eram facilmente capazes de a mim se equiparar. Desse modo recebi minha primeira punição por perturbar a “ordem”, da qual foi encarregada a própria Königin. Como resultado da surra, perdi três dentes e tive algumas costelas fraturadas. A onipotente Germânia botava Columbia aos seus pés...

Mas não quero me estender falando de minha adaptação ou dos primeiros tempos em Suburbia. Isso tornaria a narrativa por demais entediante – se é que já não matei alguns dos leitores de inanição. O que quero focar, a partir de agora, é a idéia do cabaré.

O plano veio à minha cabeça de repente, enquanto me contentava com restos de pão numa noite fria. Na região central da cidade-prisão, existia um hangar há muito tempo vazio – antigamente utilizado como depósito de munições ou coisa parecida. Contando com a ajuda de Leonid e Claude, transformar o aspecto do local não foi lá tão difícil, ainda que tivéssemos de transgredir certas “regras” da comandante e não raro agüentar os castigos. Tendo a estrutura mais ou menos pronta, iniciei a etapa mais difícil, e principal objetivo em que pensara: libertar as mulheres de Suburbia do concubinato dos agiotas. Tarefa árdua, durante a qual acabei retomando parte dos antigos ares de heroína; e feita às sombras de Königin e seus capangas. Meses de preparação, felizmente, mostraram frutos: as jovens antes escravas sexuais tornaram-se dançarinas em meu estabelecimento, onde, apesar de ainda se exporem, não eram obrigadas a fazer nada que não quisessem. As noites de Suburbia nunca mais foram as mesmas a partir do momento em que a “Orgulho da América” abriu as portas.

Retornei aos meus tempos de garota-propaganda trabalhando naquele lugar. Embora estivesse agora mais para uma ousada dançarina de cancan do que para uma “pin-up” vestindo fragmentos da bandeira, eu ainda conseguia fazer os homens verem estrelas. Com meus dois fiéis parceiros cuidando da segurança, tivemos pouquíssimos problemas nos primeiros anos. Claude, afinal, conseguia visualizar as intenções dos clientes no momento em que pisavam no cabaré, afastando assim os encrenqueiros – a cara feia de Leonid também em muito contribuindo para a intimidação. E, com os generosos pagamentos recebidos pelas performances e as mais raras noites na cama com as dançarinas, nunca nos faltou comida ou alento. Naqueles tempos de paz, passei a refletir se, devido ao meu codinome de “Columbia”, estaria condenada a transformar tudo que tocasse numa maldita “Terra das Oportunidades”...

A bonança se estendeu por um tempo, até que a luxuriosa tempestade se abateu: pessoas que não poderiam dormir juntas o fizeram. No caso, Claude e uma de minhas funcionárias, Kathy, ex-universitária que conseguia enxergar através de objetos. O caso dos dois, que se diziam apaixonados, aparentemente não seria fonte de problemas, se não fossem duas complicações: a primeira era que Kathy era a dançarina favorita de Saito, antigo soldado japonês que durante a guerra participara de um experimento fracassado para implantar uma Katana dentro de cada um de seus braços – levando o infeliz à total deformação dos membros. Ciumento e agressivo, talvez por conta da auto-estima baixa, não aceitava dividi-la com ninguém. O segundo ponto é que o envolvimento do francês com minha garota ficou mais intenso quando ele descobriu que a semente nela plantada germinaria. Kathy esperava um filho.

A questão ficou rapidamente delicada. Se Saito descobrisse o ocorrido, poderia matar Claude, mesmo que os poderes telepáticos deste o fizessem adversário quase invencível. Ainda que se tentasse esconder a verdade, logo a barriga de Kathy começaria a crescer.

Dois meses mais tarde, o japonês, enfurecido, invadiu o cabaré em pleno expediente para tirar satisfações com aquela que considerava sua mulher. Descobrira sobre o bebê por algum dos freqüentadores que era mais nosso inimigo que apreciador. Antes que eu pudesse agir, Saito levou Kathy a um dos quartos e começou a espancá-la violentamente com o ferro que tinha sob a pele. Eu, Claude e Leonid logo estávamos a caminho para ajudá-la, assim como alguns clientes mais leais. Mas, ao arrombarmos a porta do cômodo, encontramos apenas o corpo decapitado do japonês, caído junto à cama, e uma Kathy aos prantos toda coberta de sangue. Lendo seus pensamentos, o amado logo descobriu o que ocorrera.

Por ser fruto da união de dois superseres, o filho esperado pela dançarina também tinha habilidades especiais. No caso, a emissão de poderosas ondas psiônicas que haviam explodido a cabeça de Saito. Mesmo ainda na barriga da mãe, o pequeno Ulisses – como foi chamado – conseguira protegê-la do homem disposto a matá-la.

A gravidez avançou sem demais contratempos – excetuando-se copos ou outros objetos mais frágeis freqüentemente estilhaçados por onde Kathy passava. Foi, logicamente, afastada do trabalho até que a criança nascesse, já que miolos estourando cabaré a fora não era lá uma abordagem que faria muito sucesso. Claude permanecia sempre ao lado da jovem, apoiando-a em tudo. Observando o romance dos dois, sentia-me vazia por não ter vivido nada semelhante em meus tempos de liberdade. Agora, presa ali, difícil seria encontrar o supersoldado encantado montado num míssil vermelho e branco...

Até que, numa tarde quente de sol, Ulisses nasceu. Uma coisinha mirrada e fofa, quase prematuro. Os pais mal tiveram tempo de se alegrar com o filho, pois “eles” surgiram. Vindos não se sabe de onde, já que ninguém os viu transpondo os muros ou muito menos saltando de pára-quedas. Usavam reforçadas vestes de proteção e traziam nos rostos máscaras de gás, como se fôssemos alienígenas monstruosos capazes de exalar gases venenosos pelos poros. Muniam-se de rifles e metralhadoras mais avançados do que pudesse me lembrar – sinal de que a humanidade aprimorara suas formas de matar durante os anos que eu passara confinada. A atitude da espécie, todavia, não aparentava ter mudado nem um pouco: invadiram o cabaré rapidamente e, sob a mira de suas armas, nem mesmo Claude foi capaz de impedir que levassem o bebê. Arrancaram a consciência do pequeno para não correrem o risco de caírem vítimas de seu poder, desaparecendo de forma tão repentina quanto haviam surgido.

Estava claro o interesse que possuíam em Ulisses. Apesar de também verem-no como ameaça, a aplicabilidade militar de seu dom era grande demais para passar ignorada. Kathy ficou arrasada; enquanto Claude desejava vingança. O problema era que, mesmo com nossas capacidades, pouco poderíamos fazer sem saber para onde o bebê fora levado. Os governos que nos traíram sempre surgiam com uma maneira de nos manter com as mãos atadas, por mais “especiais” que nos considerássemos.

Até que um dos já referidos clientes fiéis – no caso Tyrell, próprio assecla de Königin – surgiu com a informação de que os soldados haviam desaparecido com Ulisses por uma passagem subterrânea situada aos fundos de um dos becos da cidade. Ao que parecia, sempre houvera instalações embaixo de nossos pés de onde homens monitoravam nossas ações – julgando-se assim protegidos – e realizavam experiências ainda mais escusas do que aquelas de que havíamos sido originalmente vítimas. Sabíamos agora para onde ir. Tínhamos, então, de organizar com rapidez um plano de resgate antes que o poder de Ulisses fosse usado para fins nefastos.

Enquanto escrevo esta nota – que pode ser considerada testamento, relato histórico ou seja lá o que você quiser, já que pode ser um dos poucos entre aqueles que um dia terão oportunidade de lê-la – preparo-me para a incursão ao subsolo. Caso não volte, quis apenas deixar um registro de minha existência, uma prova de que a outrora idolatrada Miss Columbia fez o possível pela liberdade de um inocente. É irônico pensar que o que me move são os mesmos ideais que representei nos tempos da guerra – pouco depois atirados no lixo de forma hipócrita quando fui movida para esta prisão. Mas, se um dia lutei pela liberdade, democracia e outros desses substantivos tão bonitos no dicionário, foi em nome de pessoas como o pequeno Ulisses. Para eles, na verdade, é que sempre persisti; e não meia dúzia de engravatados na capital.

O que mais me motivou a partir nessa empreitada, confesso, foi uma visita inesperada que recebi há algumas horas. Königin, em pessoa, veio me ver no cabaré, suas tatuagens parecendo bem mais amigáveis do que de costume, assim como seu rosto rígido. Nunca pensei que teria um momento de mulher para mulher com a comandante – ainda mais quando já esperava que tivesse de enfrentá-la no corpo-a-corpo mais uma vez, certa de que perderia. A surpresa aumentou quando ela me revelou o esconderijo secreto de armas que vinha mantendo há mais de dez anos, oferecendo seu auxílio em nossa busca, assim como o de seus dois companheiros. Redijo este parágrafo usando uma mão só, enquanto com a outra termino de limpar uma das pistolas Luger cedidas pela comandante. O início de nossa ação se aproxima.

Concluo meus pensamentos com a impressão de que, depois de ter encarado a postura retrógrada e limitada da sociedade, sinto-me mais orgulhosa por ganhar o respeito de uma inimiga sendo uma dona de cabaré superprotetora, do que se continuasse recebendo milhares e milhares de gracejos por ser uma super-heroína lá fora.

Talvez o mundo seja uma grande fruta podre, e aqueles considerados “vermes” os únicos almejando torná-lo puro. Esse, sem dúvida, é o maior ensinamento que guardarei de Suburbia e seus habitantes.

Assim me despeço...
Com amor, dedicação e orgulho
MISS COLUMBIA

A carta acima foi adquirida por John-Sem-Nariz, um dos prisioneiros de Suburbia, como parte do prêmio de uma partida de pôquer disputada no antigo cabaré “Orgulho da América”, semanas após ter sido escrita. Segundo Sean Sujo, seu proprietário original, o documento fora uma das poucas coisas encontradas incólumes no cadáver de Mary Ann Flint, quase todo destroçado pelo fogo das metralhadoras. O referido estabelecimento, após a morte de sua dona, foi transferido para a posse da comandante Königin, uma das poucas sobreviventes daquele que passou a ser chamado de “Massacre do Sob-Beco”.

Quanto ao bebê Ulisses, jamais voltou a ser visto na cidade-prisão, seus pais também eliminados na tentativa de salvá-lo. A pouca informação vinda de fora – vendida a alto preço dentro dos muros – cogitava que o garoto crescera sob a tutela do governo e agora era empregado em missões contra os russos. O mais irônico, ao que parecia, era o codinome dado pela CIA ao menino, inspirando-se num dos fatores de sua conturbada origem...

“Garoto Columbia”.



Goldfield, pseudônimo de Luiz Fabrício de Oliveira Mendes (baseado num de seus personagens), nasceu em Casa Branca – SP, no ano de 1988. Escreve desde os 12 anos de idade (2001), produzindo contos, fanfics e noveletas. Já publicou trabalhos em diversas antologias de literatura fantástica. Formado em História pela Unesp (2010), atualmente leciona em escolas públicas e privadas. 

Além da escrita e da leitura, tem games, RPG, histórias em quadrinhos, miniaturas colecionáveis e cosplay como outras de suas paixões. Iniciou a saga “O Legado de Avalon” em 2014, com a publicação do primeiro livro, “O Garoto, O Velho e A Espada”, atualmente disponível em formato eBook Kindle pelo site da Amazon.

Diversos de seus textos podem ser encontrados na Internet em sites como www.fanfiction.com.br e www.wattpad.com, nos quais também publica com o pseudônimo “Goldfield”.



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