Olá Leitores,
Para iniciar os contos desse mês, um conto que nos trás tanto nostalgia dos tempos de escola, quanto reflexão sobre as decisões que seguimos nessa idade.
Por DiRock
O sol pintava a grama verde da praça. Os paralelepípedos absorviam o calor de sua luz, fazendo os animais de rua fugirem do asfalto.
As crianças brincavam freneticamente. Assim como Bia, nenhuma teve seus pés queimados por não os deixarem no chão por muito tempo. Disposição de dar inveja à mãe Franciele.
Preencheu sua timeline do Face com as fotos menos embaraçosas de sua filha junto com as demais crianças. Indiferente ao número de curtidas e comentários agradáveis, sorria por ver sua família novamente aos risos e cheia de energia.
Alguém aguardava a chegada do ônibus no ponto. A luz solar não pintava o banco debaixo da cobertura. As roupas do homem eram tão pretas como a própria sombra. Estava lá antes mesmo de ela chegar com a sua filha. Fileiras engavetadas de carros na rodovia sobre o horizonte da praça indicava outra viagem tediosa até São Paulo.
No terceiro belisco seu olhar voltou na sapeca Bia. Veio aos pulos com a cor da terra preta em seus cabelos negros e roupas claras. Poderia gritar com ela por ter de virar o dia seguinte só limpando tais sujeiras, só que sua lindinha já presenciou brigas demais.
“Preciso de paçoca!”
“Precisa, é?” Afanou os cabelos da pequena e pegou a nota de menor valor que tinha.
“Brigada.” Correu ao quiosque e encheu sua mão com os doces embalados.
Cada criança pegou o seu, rasgou o pacote e praticamente o engoliu. O coração de Franciele saltitou por momentos, e suspirou em seguida por nenhuma das crianças terem engasgado.
Bia retornou com três paçocas em mãos. Estendeu seu braço com os doces, porém sua mãe novamente fitou o sujeito solitário de roupas negras.
Quatro beliscões não chamaram sua atenção. Até que arremessou a paçoca sobre as coxas e correu com as outras duas em direção do moço solitário.
“Filha!” reagiu Franciele quando Bia já estava no ponto de ônibus.
O sujeito repousava seu rosto nos braços cruzados apoiados nas coxas. Os dedinhos franzinos da menina cutucaram seu braço, depois sua cabeça e por fim os joelhos. Insistiu em dar as duas paçocas, só que recebeu o “obrigado” conciso e negativo como resposta.
“Não incomode o moço, Bia.”
Ele coçou o rosto nos braços fechados outra vez.
“O moço tá tite, mamãe” puxava a saia de Franciele enquanto o apontava. “Você mesmo disse que paçoca faz as pessoas tites ficarem feliz.”
A risada tímida soou por baixo de seus braços cruzados. “Sua mãe parece muito inteligente.”
“Jeff?” A voz nada estranha do sujeito ecoou o nome encontrado nas memórias de Franciele. Memórias daquele menino tímido, que dormia em todas as aulas e ainda tirava as melhores notas da escola.
Sua cabeça ergueu-se e tirou a dúvida da mãe da garota. Pousou suas mãos no ferro morno daquele banco. “Há quanto tempo, Fran.”
“Ele está lavando o rosto com os olhos! Meus olhos também lavaram o rosto na semana passada.”
“Filha…”
“Papai virou estrelinha no céu”, explicava Bia ignorando a ordem de Fran. “Ele berrava muito comigo e com mamãe. Desde que ele ascendeu pra bilhar na noite eu não o ouço. Meu rostinho ficou molhado dia após dia até mamãe me mostrar onde estava papai. Agora vejo ele todas as noites enquanto nós duas comemos paçoca.”
“O seu pai… ascendeu no céu?” absolveu as palavras calmamente. “Meus pêsames, Fran. Imagino o quanto é difícil cuidar da filha sozinha.”
“Nada. Tudo fica fácil com doce de amidoim.”
“Você tem razão, menina.” Jeff deu-lhe cafuné, arrancando risos da pequena. “Ainda posso pegar o seu doce?”
“Pegue os dois!” Abriu novamente sua mão com os doces.
“Guarde o outro para mais tarde.” Pegou a paçoca das mãos dela. “Muito obrigado.”
Ao ouvir outra criança lhe chamar, Bia despediu dos dois e voltou às brincadeiras. A luz do sol enfraquecia aos poucos.
“Ainda com dificuldade em sorrir?” Sentou ao lado do amigo de infância enquanto seus lábios se alongaram.
“Era mais fácil na escola, quando estava perto de você.”
“Também não era difícil tirar notas boas quando fazia os trabalhos com você sendo minha dupla.”
“Hoje não precisamos de notas escolares.” Suspirou e coçou seu olho avermelhado. “A vida é muito dura, não acha?”
Fran negou com a cabeça e olhou de relance sua filha. “Mesmo que seja, temos de brigar pela nossa felicidade. Jamais se render.”
“Nunca fui bom em brigas.” Ocultou outra vez seu rosto virando no outro lado. “Não sou bom em muita coisa.”
A mão feminina tremeu ao pousar em seu ombro extremamente rígido. Levou seus dedos até o queixo distante do amigo e tentou puxá-lo. Só conseguiu recuperar seu olhar ao envolver o braço em suas costas e virá-lo a ela.
A camisa lhe dava arrepios. A estampa tinha o desenho da costela humana despedaçada, com poeira pelo ar feita dos ossos que deixaram de existir; e o coração fraco na estampa, jorrando sangue em toda a peça de roupa.
“Você é excelente em muita coisa, bobinho.” Colocou as mãos em cada lado da face e o fez fita-la e ouvir. “Ainda está a nascer pessoa tão honesta como você. Se ao menos eu não fosse tão estúpida… Eu nunca tomaria o caminho diferente do seu.”
“Meu caminho não traz felicidade.”
“Claro que traz! Minha filha há pouco tempo só queria arranhar qualquer pessoa que se aproximasse. Hoje graças a Deus ela está aos risos, e juro que o seu melhor sorriso foi quando você aceitou a paçoca.” Desceu sua mão direita até o coração estampado na camisa, acariciou o desenho e pegou o colar com a cabeça de lobo. “Você só precisa se desprender destas correntes amarradas consigo.”
Sob a chegada do crepúsculo seus lábios tocaram-se. Risadas foram trocadas enquanto o ônibus passou direto do ponto e foi embora.
“Tem visto o André?” perguntou Jeff. “Só faltou ele, e assim estaríamos com o grupo completo.”
“O grupo com aquele nome tosco?” A sobrancelha esquerda levantou levemente com a pergunta.
“Mesmo tosco, Irmãos de Paçoca resumia muito bem o que a gente sempre comprava na quitanda da escola.”
Fran riu outra vez ao lembrar do doce em sua mão.
“André também tem filho. Nunca vi pai tão atrapalhado.”
“Espere… O André com filho? Ele não era-“
“Ainda é, bobo! Não se pode mudar isso. Ele adotou o menino junto com seu marido.”
“Quero conhece-los e rever o nosso amigo. O clube de paçoca pode ficar maior a partir de agora.”
“Sim. Só que haja doce de amendoim com toda essa gente!”
A noite entregou ventos refrescantes enquanto Fran voltava em casa com Bia. Insistiu que Jeff as acompanhasse como visita.
Os três tiveram momentos sucessivos de alegria que jamais tinham presenciado antes.
Bia e Fran procuraram novamente o pai/marido no céu noturno de luar tímido.
Quando descobriu que tinha violão no apartamento há muito deixado de lado, Jeff o tomou emprestado, afinou as cordas e começou a tocar uma canção de Bob Dylan.
Postagem original Blog XP Literário
Diego de Araujo Silva, mundialmente conhecido como DiRock S. (Só que não), é formado tecnólogo em Análise e Desenvolvimento de Sistemas, aspirante a aprender sempre, gamer cada vez mais casual, e nerd como estilo de vida. Autor de contos no Wattpad, criador do blog XP Literário e está escrevendo um romance distópico chamado Artesãos da Tecnologia Anciã.
Epígrafe (praticamente meu mantra):
“Todo dia aprendizado
Com certeza será válido
Mesmo contra o que queira
Aprendendo com a arte para lidar com as perdas”
(Uganga)
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