Doce Espera: diário da mamãe e do bebê

[Contos de Março] Alma Gêmea por Luiz Moreira

Olá Leitores!

Para finalizar a semana da mulher esse conto para nos fazer refletir.

Alma Gêmea 


Eu tinha dez anos quando ganhei um sapato novo. Eu o chamava de novo porque meu pai me levou para escolhê-lo na loja ao invés de me trazer o sapato usado das minhas primas. Eram sempre pequenos para os meus pés e sempre feios aos meus olhos. Usava-os mesmo assim, eram eles ou os pés no chão, meu pai dizia. Eram amarelados, os cadarços desfiados e a sola gasta. Parecia que haviam sido usados para sempre de tão velhos. Meus pés suplicavam para sair deles, meus dedos doíam e criavam calos enquanto gritavam, mas eu permanecia calçada, nunca com os pés no chão. Ele dizia que só os mendigos - sem casa e família, sem razão para viver - é que andavam descalços. Eu tinha medo de colocar os pés no chão e esquecer meu propósito. Propósito este que eu sequer sabia qual era, mas que temia perder antes mesmo de ganhá-lo. 

Eu fiquei maravilhada quando entrei na loja. Quantos sapatos haviam! Tinham de todas as cores, de todos os tamanhos, com cadarços novos e coloridos. Com borboletas alçando voo. Com nuvens que pareciam vivas iguais às nuvens do céu. Era o paraíso. Meus dedos calejados coçavam doidos para entrarem em todos os que meus olhos lacrimejavam ao ver. Por isso minhas primas eram tão felizes, com risadas corajosas e olhares superiores. Elas entravam ali toda vez que precisavam de um sapato novo, sempre que jogavam os que estavam velhos em mim. Eu correria por dias, desceria e subiria morros, pularia e arrastaria os pés nas calçadas. Só para gastá-los logo, só para poder voltar à loja e escolher um ainda mais lindo que o anterior. Eu provavelmente iria sorrir mais, não deixaria os sapatos lindos dos meus pés se enfearem por causa da minha cara triste. 

Rapidamente eu avistei. Meus olhos saltaram do meu rosto. Meu coração se acelerou apressado para colocar as mãos. Os dedos dos meus pés, minha nossa! Quase pulavam todos de alegria. Eles estavam na vitrine, suspendidos. Pareciam flutuar olhando de longe. Vermelhos, sem detalhes. Eles foram feitos para mim, eu também vermelha e crua encontrava a minha alma gêmea. Queria logo colocá-los nos pés. Seria somente deles, meus pés não ousariam jamais a querer entrar em mais nenhum outro. Dormiria com eles. Levantaria com eles. Meus cabelos agora combinariam com eles, eu andaria na rua com passos largos os ventos batendo em meus cachos fazendo-os voar por cima de minha cabeça. Seriam os cabelos mais lindos do mundo, cabelos da cor dos sapatos. 

Eu disse logo ao meu pai que eu os queria. Ele me olhou com indignação. Que sapatos horrorosos, ele disse. Como poderia dizer tal coisa? Era os sapatos mais lindos de toda a loja. Brilhavam com tamanha beleza. Insisti com toda a força do meu coração, não me importava se ele os achavam feio. Meu pai não tinha muito gosto para as coisas, afinal. Vivia dizendo que meus cabelos não estavam bonitos, talvez ele só odiasse a cor vermelha. Mas ele continuou dizendo não. Meu coração agora gritava. Eles estavam ali bem na frente, os sapatos com que sonhei a vida toda e mesmo assim não conseguia pegá-los. Meu pai imediatamente me deu um beliscão no braço que me fez ver estrelas e gritar de dor. Um olhar só bastou para que eu calasse a boca e sofresse em silêncio. 

Eu não teria os sapatos vermelhos e todo o meu corpo doía em pesar. Meu pai me apontou uma caixa no chão, com vários outros sapatos desbotados como os de minhas primas. Havia uma placa feita a mão dizendo que estavam na promoção. Alguém deveria correr e retirar aquela caixa com sapatos tão feios de dentro de uma loja tão bonita. Outro olhar duro de meu pai me fez escolher logo um, peguei o mais feio que encontrei, pelo menos ele era diferente dos demais e tinha uma fivela vermelha do lado. Ali estava meu sapato novo dentro de uma caixa. Me recusei a olhar de novo para aqueles sapatos lindos suspensos na vitrine, não queria vê-los novamente se não podia tê-los para mim. 

Não olhei uma única vez. Mas meus pés se lembrariam para sempre da sensação de imaginar calçá-los. Eu sonharia com eles todas as noites e nos sonhos eu teria um sorriso largo até os cantos das orelhas. Teria sol, ao invés de chuva como agora. Meus cabelos seriam puro vento e minhas sardas refletiriam a luz do sol. Agora só chovia e chovia e choveria sempre. Meu pai me deu o guarda-chuva para irmos embora. Me impressionava o quanto estava triste o dia ali de fora, parecia a caixa de sapatos na promoção. Fomos embora e eu não dei um pio. Chegando em casa eu larguei os sapatos em cima da cama e andei descalça pela casa. Meu pai não disse nada e eu também não. 

Meses depois eu os avistei de novo. Ainda brilhavam. Novamente todo meu corpo sentiu vontade de correr e pegá-los nos braços. Quanta luxúria corria pelos meus pensamentos. Eles ainda eram a minha alma gêmea e eu agora seria a sua amante. Os cabelos dela eram ruivos como o meu, tomava um sorvete do outro lado da rua enquanto olhava um esperto vira-lata passando com a sua dona. Eu queria ser ela. Pelo menos queria que fossemos primas, para que ao menos quando ela o gastasse todo, ela o jogaria em mim com um sorriso satisfeito. Eu não importaria, ele ainda seria o sapato que eu tanto amei, mesmo desbotado. Também não haveria nenhum problema, eu - mesmo que vermelha, também não tinha muita cor.

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