[Contos de Fevereiro] Dois Carnavais por Alexandre Reis

Olá leitores,

E a vida nos prega peças, vai vendo! E no amor não é diferente, e este conto do Alexandre nos dá uma grande lição sobre esse assunto: o amor da nossa vida e as paixonites que o mundo nos trás para nos desvirtuar do nosso destino.

Dois Carnavais


Vou até o banheiro e jogo água no meu rosto. Olho-me no espelho e vejo um rosto com uma aparência de cansado, de quem não dormiu bem durante a noite. Vejo a água escorrer pelos sulcos das minhas faces. Enxugo o meu rosto imediatamente para não ter que olhar para isso e espero que minha mente se acalme.

Volto para o quarto, pego minha carteira e me sento na cama ao lado da minha esposa que ainda dorme. Pego uma foto de dentro da carteira e fico segurando-a por um instante. É da minha família. Estamos todos sorrindo. Todos felizes! Olho para mim naquela foto e fico imaginando como tudo poderia ter sido diferente. Guardo a foto na carteira e fico pensando no que tinha acontecido ontem à noite.

Minha esposa Tereza, eu e nossa filha Paula chegamos ontem à tarde em João Pessoa. Viemos de Cascavel para comemorar o nosso décimo aniversário de casamento e aproveitar o Carnaval. Bom, minha esposa quer aproveitar o Carnaval, pois tenho um ódio desta festa popular e este ódio tem uma origem bem definida. Até tivemos uma discussão quando estávamos planejando as datas da viagem. Eu queria vir depois que tudo relacionado ao Carnaval tivesse passado. Perdi a discussão e aqui estou.

Logo que chegamos ao nosso hotel, decidimos que iríamos passear pela praia, mas nossa filha estava muito cansada. Decidimos que enquanto minha esposa ficava com ela, eu iria até a praia para reservar um lugar para a próxima noite.

Escolhi ir a pé até a praia de Tambaú para sentir o cheiro do mar e estava esperando a embarcação que me levaria até Picãozinho, pois tinha ouvido muito falar naquele ponto turístico. Tinha ouvido falar da beleza natural do lugar e já que queria fazer uma surpresa para minha família, achei que não podia perder aquela oportunidade. 

🎉

― Lauro? É você? 

Escutei aquelas palavras e mesmo antes de olhar para trás, sabia de quem era. Aquela voz ressuscitou dentro de mim velhas recordações que já tinham sido enterradas há muitos anos. Travei uma luta interna para controlar as minhas emoções. Virei-me, mas tendo o cuidado de não revelar nada do que estava sentindo.

― Não acredito! É você mesmo, Lauro?

― Clara? ― tentei parecer surpreso com a presença dela naquele lugar e depois de tantos anos.

Ela correu e me deu um abraço que procurei retribuir, mas com um medo interno de deixar escapar algum sinal que pudesse revelar aquilo que há muito tempo vinha escondendo.

― Quanto tempo? Nunca mais tive notícias de você. ― Clara disse com aquele sorriso que eu aprendera a amar. Tentei não olhar as covinhas maravilhosas que se formavam quando ela sorria.

Eu disse algumas palavras que agora não me recordo. 

― Este é o Caio. Está com dez anos. Dá um oi para o tio, Caio. É um velho conhecido da mamãe. ― ela disse, mas não sei se percebeu que fiquei um pouco sem jeito.

Tio? Será que eu tinha escutado corretamente? Dei um oi para o menino e um sorriso murcho, mas não ganhei o oi do menino.

― Vamos, Clara. A embarcação já vai partir.

― É o Douglas. Casamos há doze anos. Você também está indo conhecer Picãozinho?

― Não. Estou apenas conhecendo a praia. ― falei tentando disfarçar a mentira que tinha criado sem saber o porquê.

― Vamos, mamãe! ― gritou o menino.

― Foi muito bom te encontrar. Toma o meu cartão. Liga para a gente conversar de novo. Tchau!

Eles entraram na embarcação. Clara me acenou, depois virou-se e pegou a mão de seu filho. Vi ainda quando seu marido a enlaçou pela cintura e o sorriso que ela lhe deu.

Depois que já estavam muito longe, fiquei olhando o cartão e comecei uma viagem mental no tempo.

Conheci Clara num clube de leitura da escola. Eu estava no último ano do Segundo Grau que hoje se chama Ensino Médio. 

Lembro que naquela tarde, durante o encontro, Tereza presidia a reunião. Naquela época, eu era apaixonado por ela. Tereza gostava de ler Alexandre Dumas e eu vinha lendo os livros do escritor francês regularmente para tentar impressioná-la.

Não me recordo, mas surgiu um debate sobre livros favoritos. Eu me antecipei a todos e disse que o meu favorito era Os Três Mosqueteiros. Tereza me olhou e deu um sorriso. Seguiu-se uma algazarra e quando foi controlada pelos gritos quase histéricos de Tereza, do fundo alguém disse.

― Crime e Castigo é o meu favorito.

Olhei para trás, pois tinha sentado na primeira fila uma vez que queria ficar perto da minha amada Tereza. 

― Mas gosto muito de Os Três Mosqueteiros ― disse isso e me lançou um olhar.

Nunca imaginei que eu pudesse deixar de amar Tereza. Mas ao ver aquela mulher ― que não era mais velha do que eu ― no fundo da sala, meu coração foi tomado por uma amnésia em relação a minha vida amorosa. 

Eu já tinha tentado ler Crime e Castigo, mas não consegui ir muito longe. Lembro que, naquele tempo, achei o livro muito chato. Que era uma forma elegante de dizer para mim mesmo que eu não estava entendendo nadinha de nada.

Não lembro precisamente como Clara ― mais tarde descobri que seu nome era Clara ― nos tornamos grandes amigos. Bem, nós não éramos amigos. Clara me considerava um amigo, mas eu a considerava o amor da minha vida.

Lembro que um dia ela tentou me explicar por que Crime e Castigo era o livro favorito dela. Explicou que o autor ― que eu não conseguia repetir o nome ― estava tentando, por meio do personagem principal ... Eu não prestei mais atenção a sua fala.

Enquanto ela explicava, comecei a olhá-la com mais atenção. Fiquei mais apaixonado vendo aquele rosto sério, concentrado, procurando palavras para tornar a ideia mais crível, ou que fosse mais fácil para eu entender. 

― Por que você está me olhando desse jeito? 

― Depois da sua explicação, até me deu vontade de ler o livro. ― disse mentindo, pois queria dizer “Eu estava pensando em como te amo”.

Ela riu e formou duas covinhas. Eu continuei olhando e rindo.

― E agora? O que você está pensando?

― Estou me perguntando se toda mulher inteligente é bonita ou é a inteligência que a deixa bonita.

― Seu bobinho! ― disse ela rindo.

O ano letivo terminou e não tive coragem de dizer a ela o que eu sentia. Encontrei-a antes do carnaval e me disse que iria estudar numa universidade alemã. Meu coração quase parou, mas o que ela me disse depois foi a coisa mais horrível que ela poderia ter dito. Disse que iria desfilar numa escola de samba e me pegando pela mão ― o único contato que até então tivéramos ― e me levou para ver a fantasia que iria usar.

Quando chegamos, indicou aquilo que ela considerava como sendo uma fantasia. 

― O que está procurando? ― perguntou quando eu comecei a olhar ao redor.

― Onde está ... você sabe ... a parte de cima?

Ela então me explicou que não havia nenhuma “parte de cima”. Ela desfilaria num bloco que seria chamado “As Sereias”.

― Onde você vai assistir o desfile? Quero acenar para você. 

Fiquei sem fala e para minha desgraça, comecei a gaguejar enquanto ela me olhava e sorria. Finalmente disse que odiava o Carnaval e que não iria assistir o desfile. Tentando concertar a má impressão que tinha deixado, fiz questão de lhe desejar que o desfile fosse um sucesso. 

Meus colegas, quando descobriram que minha paixão iria mostrar os seios durante o desfile, reservaram uma sacada no Hotel Imperial. A sacada ficava no segundo andar, e segundo eles, seria possível ver tudo o que eu ainda não tinha visto. Mandei todos se catarem e disse que não iria assistir ao desfile.

Na noite terrível, fui convencido pelo meu melhor amigo a ir assistir o desfile. Saímos já um pouco tarde, pois ele levou muito tempo para me convencer. Lembro que ele saiu cortando os carros com sua moto nova.

Enquanto ele fazia as barbeiragens, eu suava. Não de medo de um acidente, mas da zombaria dos meus amigos. Eu torcia que Clara não soubesse que eu estaria naquela sacada. E se ela olhasse para mim e me visse olhando para seus seios? Sim, eu queria olhar! Eu iria olhar! Tinha sonhado com eles durante todo um ano e queria ver se a versão original era igual àquela das minhas fantasias.

Dois meses depois de sair do coma e de me dar conta do que aconteceu, comecei a rir histericamente. Mais tarde chorei convulsivamente quando soube que meu amigo tinha morrido no acidente que ele mesmo tinha causado.

Assim que minha família entrou no quarto, começamos todos a chorar. Minha mãe me cobriu de beijos e depois que teve certeza que eu estava bem, tratou de me deixar alegre.

― Tem uma pessoa que está ansiosa para te ver. Ela passou todos os dias vindo visitar você. Podemos mandá-la entrar? ― disse mamãe ainda enxugando as lágrimas com as costas das mãos e piscando um dos olhos para mim.

Ninguém seria capaz de avaliar a minha felicidade. Clara estava ali fora. Ela não tinha ido para a Alemanha só para ficar perto de mim.

― Claro, mamãe!

― Vamos deixar vocês dois a sós. 

Minha família saiu e deixaram a porta aberta. Assim que Tereza apareceu na porta, comecei a sorrir. Não imaginava que meu coração pudesse ser tão volúvel.

🎉


― Você já está acordado? ― perguntou Tereza. ― Ainda está bravo comigo?

Ela se referia a nossa briga. Eu não queria passar o Carnaval em João Pessoa.

― Não. Está tudo bem.

Levantei, fui no banheiro, olhei mais uma vez o cartão que Clara tinha me dado na noite passada. Amassei-o e depois o joguei fora.

Voltei ao quarto, sentei ao lado da Tereza. Ela tinha voltado a dormir, mas eu tinha certeza que este seria o melhor Carnaval da minha vida.

Márcio Alexandre de Oliveira Reis é professor de Matemática, leitor de HQs, casado com a mulher mais paciente do mundo, pai do Pedro e futuro pai do Paulo. :)

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