[Contos de Janeiro] O Sabor de Um Diploma por Luís F. C. Cavalheiro

Olá Leitores!

Quem aqui não sonha com o tão disputado diploma? Ouso dizer disputado, pois nos dias de hoje e com todas as facilidades, ainda parece mais disputado do que séculos passados. Mas não desanimeis, muitos iniciarão como calouros seus estudos, outros como veteranos, mas não desanimem, estamos torcendo por você!

O Sabor de Um Diploma por Luís F. C. Cavalheiro

Parcialmente baseado em uma história real


   Eu observava meus companheiros de turma durante a cerimônia e refletia sobre o caminho que cada um deles trilhara para estar ali naquele momento tão especial para todos nós. Decerto todos teriam uma história acidentada para narrar caso se importassem com isso, mas a alegria deles aparentemente sobrepujava toda e qualquer necessidade de uma análise retrospectiva e da comparação, para mim inevitável, entre o início e o fim de um ciclo tido como um dos mais importantes em nossa sociedade. Olhava para os familiares, todos bem vestidos, todos sorridentes, todos transparecendo imunidade a qualquer mazela social – o que de certa forma acentuava minha sensação de solidão e isolamento, bem como a certeza do abismo que nos separava a despeito de estarmos juntos. Se aquele era o pináculo da vida de um jovem das classes mais abastadas, para mim era a realização do impossível: eles eram o reforço mais claro de que eu, se os ditames sociais valessem de algo, não deveria estar ali. 

   Deixo minha mente divagar sobre minha vida, uma forma de abstrair daquela sensação desagradável que me tomara de assalto. Ademais, uma conquista como a de hoje só faz sentido e se torna apreciável quando contrastada pelas condições imperantes no início, e um exercício tal parecia se fazer necessário. Foquei logo na primeira diferença: eu estava sozinho porque, diferente de meus colegas, eu não tinha família. Eu nunca conheci meu pai, minha mãe ou família que não fosse Anastácia, uma senhora que gentilmente cuidou de mim apesar dela própria mal ter o que comer. Cresci em uma favela, e aos dez anos já entendia, ou melhor, fui forçado a entender, que minhas perspectivas e oportunidades eram bem distintas de muitos outros garotos da minha idade. Enquanto alguns faziam cursos de idiomas ou de informática, bancados pelos pais, eu, bem como quase todos os garotos que cresceram na mesma rua que eu, dividia meu tempo entre estudar numa escola pública, deixando de ter muitas aulas por conta da violência ou da ausência de professores, e trabalhar à noite como ajudante de faz-tudo em um boteco da comunidade. A mídia me mostrava como outras crianças da minha idade viviam, e mais de uma vez a raiva e a indignação dominavam meus pensamentos enquanto eu, exausto, caía na cama para recuperar as forças para o dia seguinte. Muitos amigos meus envolveram-se com o tráfico de drogas ou outras formas de criminalidade – sobre eles, basta dizer que nenhum viu a maioridade civil. Não os recrimino, contudo. Em uma sociedade na qual o valor do indivíduo é medido por suas posses, resistir a tentação do dinheiro fácil e constante exigiu muito mais do que força de vontade. Ainda não sei se eu fui um privilegiado, um virtuoso ou um covarde. 

   Meu primeiro contato com o mundo fora da favela aconteceu aos quatorze anos. Incentivado pelo meu professor de Língua Portuguesa, prestei concurso para uma prestigiada escola técnica pública do meu Estado. As deficiências de minha formação escolar precisaram ser compensadas em um único ano, o que demandou de mim muito mais do que simplesmente estudar no pouco tempo livre que tinha. Precisei encarar o escrutínio dos meus vizinhos, que por considerarem meu objetivo “um sonho distante” viam no esforço uma perda de tempo. Apenas Anastácia, meu professor e Matias, o dono do boteco, me apoiavam – Matias muitas vezes pagava minha diária mas me mandava para casa estudar. Um bom homem, penso. Depois eu soube que ele havia perdido um filho para o tráfico, e imaginei que ele não queria o mesmo destino para mim. Isso não diminui o mérito de suas ações. 

   Surpreendi a todos os meus “incentivadores” quando passei em segundo lugar geral. A hipocrisia das felicitações escorria pela minha pele como lágrimas na chuva, e, igualmente hipócrita, agradeci a todos pelo “apoio” que eles me deram. Dos meus verdadeiros aliados na dura luta pela vida recebi mais do que palavras vazias. Matias se comprometeu a reduzir minha jornada semanal mas não meu salário, e meu professor comprou os materiais escolares que eu precisaria para o meu primeiro ano escolar. Anastácia, a mais humilde dos três, juntou suas parcas economias e me levou para comer um lanche num restaurante fast-food. De todos, esse foi o presente que me deixou mais feliz, pois foi como a esmola da viúva que o pastor vivia falando no culto – no mínimo irônico, pois ele nos admoestava sobre o valor do dízimo para a obra do Senhor ao mesmo tempo que circulava para cima e para baixo em um carro importado e blindado. 

   Na escola técnica vi em primeira mão uma das grandes injustiças de nossa sociedade. Naquela escola, que apesar de excelência era pública, eu esperava ver inúmeros garotos e garotas na mesma situação financeira que eu, mas logo no primeiro dia percebi ser uma gritante exceção à regra. Os filhos das classes sociais mais privilegiadas dominavam as salas e os corredores da instituição de ensino, tomando vagas de quem não tinha condições de pagar por um bom ensino. Desde antes eu nunca acreditei no discurso meritocrata, aquele que diz que as oportunidades estão aí para quem se esforçar, mas ao entrar naquela escola entendi, de um modo bem cruel, o quão desigual é nossa sociedade e o quão privados de oportunidades na vida estão os membros das classes menos abastadas. Aquela escola de excelência, que exigia concurso de acesso para o ingresso, era ocupada por pessoas que poderiam pagar por um ensino tão bom, ou talvez melhor, quanto o oferecido ali. Pergunto-me até hoje se um pai de classe média alta, que incentiva seu filho a prestar o concurso de acesso para aquela escola pública de excelência, matricularia seu filho em uma escola pública regular. Até hoje creio que a resposta para minha pergunta seja não. 

   Digressões à parte, a constatação de minha inferioridade acadêmica foi meu melhor motivador para me tornar o melhor aluno que aquela escola já vira. O ensino era integral, mas nos intervalos de aula eu era sempre encontrado na biblioteca estudando ou lendo alguma obra de ficção que servisse para acrescentar algo à minha ilustração ou para me distrair das atrocidades da vida. Enquanto meus colegas de turma orgulhavam-se das festas às quais iam ou dos porres que haviam tomado, meu mérito era ser um aluno querido pelos professores em virtude de meu desempenho escolar. Obviamente não conquistei isso da noite para o dia. Além de todo o esforço que tive de empregar em meus estudos, precisava também compensar as outras deficiências que surgiam decorrentes de minha situação financeira. Coisas tão triviais para meus colegas de turma, como curso de idiomas ou acesso à internet, me eram, ainda, sonhos distantes, e eu sabia o quanto isso afetava minha formação. Não estou querendo me endeusar pelo esforço que fiz, muito pelo contrário. Anastácia era, até sua morte, a pessoa mais esforçada que conheci em minha vida, mas por falta de oportunidades ela acabou morrendo à míngua. O contraste entre meus colegas e ela apenas reforçavam a compreensão da falácia amarga e perigosa da meritocracia: eles nasceram com condições financeiras para conseguir algo mesmo sem o menor esforço, enquanto Anastácia viveu a vida de um burro de carga apenas para não passar fome. 

   No último ano do curso técnico tive uma conversa que marcaria minha vida para sempre. Um dos professores, muito afeiçoado a mim, pediu para conversar ao fim de uma aula. Assim que os demais alunos saíram, ele me perguntou se eu tinha planos de cursar uma graduação. Respondi, sincero, que não, pois não teria condições de me sustentar num curso superior, e então contei a ele um resumo da minha história de vida. Ele ouviu atentamente, e ao final respondeu amavelmente que se eu havia chegado até ali, eu certamente conseguiria avançar mais. Ele emendou com outra pergunta, sobre qual graduação eu queria fazer. Respondi que jamais havia pensado nisso. Ele sorriu e disse a frase crucial: “você seria um ótimo engenheiro, mas não desperdice sua vida nisso, pois seu talento é para a matemática pura”. Cocei o queixo e sorri. Entretanto, aquela conversa mexeu com alguma coisa na minha mente. Na semana seguinte pedi para conversar com esse professor após a aula, e perguntei se ele me ajudaria a estudar para passar no vestibular. Ele sorriu genuinamente feliz e concordou. 

   O resto do ano seria muito bem definido pela expressão “arrancar o couro”. Meu tempo era dividido entre o final do curso técnico, o trabalho no boteco do Matias, e a rotina de estudos que esse meu professor impôs. Passei dias sem dormir, e muitas vezes tinha que decidir entre ter tempo para comer e ter tempo para estudar. Minha saúde, tanto física quanto mental, se deteriorava, mas eu não aceitava parar nem por um minuto. Anastácia punha muita fé em mim. Matias acreditava no meu sucesso e me incentivava como se fosse um pai. Meu professor, apesar de preocupado com minha saúde, me fazia ir para além dos meus limites. O descaso dos meus colegas de turma e o “incentivo” dos meus vizinhos eram o combustível para o motor que minha mente se tornara. Era difícil, mas eu saboreava cada momento daquele esforço inumano pelo que ele era: uma afronta e um tapa na cara de uma sociedade que preferia me ver roubando ou matando em vez de conseguindo uma vaga destinada para um dos bem-nascidos. 

   Por fim minha dupla conquista naquele ano. Não apenas passei em uma ótima colocação no vestibular, como na cerimônia de formatura do curso técnico a direção me homenageou como o melhor aluno daquele ano. Meus colegas de turma simplesmente não admitiam que o “favelado” tivesse conseguido tamanhas honrarias – principalmente porque muitos deles não haviam passado no vestibular. Matias e Anastácia estavam ali, minhas figuras materna e paterna, e se sentiam tão orgulhosos de mim que não conseguiam falar direito. Era uma conquista deles também: nenhum deles tinha terminado o ensino médio. A pedido de meu professor, a direção me chamou para discursar na frente dos demais formandos, mas eu disse apenas uma frase: “Eu poderia fazer um discurso hipócrita sobre mérito, mas serei sincero: não há limites para quem não acredita neles.” Acredito que meus colegas não gostaram muito do que ouviram. 

   Aquela foi a última conquista que Anastácia e Matias partilhariam comigo. Minha mãe adotiva morreria algumas semanas depois, vitimada por um infarto fulminante; Matias, em um assalto ao seu boteco. Privado subitamente de minha família, quase desisti da graduação, mas meu professor arranjou um emprego para mim em uma empresa da qual ele era um consultor. Mesmo assim não sentia muito ânimo para seguir em frente, como se todas as razões para buscar algo melhor do que eu já tinha tivessem sido engolidos pelo oblívio junto com o caixão de Matias. Percebendo meu estado aquebrantado, meu professor outorgou-se o papel de padrasto e ajudou-me a não sucumbir aos abismos inomináveis da loucura – mesmo que fosse pela simples obrigação autoimposta de não decepcioná-lo. 

   A graduação em matemática aprofundou ainda mais a noção de desigualdade e injustiça de nossa sociedade. Eu estava mais uma vez em uma instituição pública de ensino, mais uma vez vendo vagas na rede pública de ensino tomadas por pessoas que poderiam pagar por sua formação. Meus colegas agiam como condicionados por sua formação social, e tratavam como triviais certas coisas que para mim eram inatingíveis antes do trabalho que meu professor arranjara. Havia, porém, uma postura diferente: eles não discriminavam pessoas por conta de suas origens. Isso me ajudou a procurar a amizade deles e a tentar me integrar no grupo – observadas, é claro, minhas limitações, como a necessidade de acordar cedo no dia seguinte ou a existência regrada que a vida assalariada me impunha. Isso mitigou um pouco a raiva a indignação que me acompanhavam desde a infância, não pela súbita sensação de pertencimento ao grupo social (tal qual acontecera a Bernard Marx em “Admirável Mundo Novo”), mas pelo entendimento que minhas visões anteriores eram tão preconceituosas quanto as de quem havia me discriminado. 

   O resultado óbvio foi que acabei fazendo muitos amigos, e de certa forma isso tornou minha vida um pouco mais leve. Porém colhi outros benefícios também. Não havia mais a necessidade de constantemente me superar, apesar das palavras de meu professor estarem corretas e eu ter o que se chama de talento nato para as minúcias e tecnicidades da matemática. Até meus colegas notavam como eu parecia um peixe na água, de tão naturalmente que o conhecimento me vinha. Meu professor morreu quando eu estava no quinto período, e em seu testamento ele me deixou uma pequena soma de dinheiro suficiente para comprar um apartamento modesto fora da favela. Se isso tivesse acontecido antes, eu teria pego o dinheiro e investido na velha casa da Anastácia, onde ainda morava. Naquele momento, peguei minhas coisas e simbolicamente deixei minha velha vida para trás. Eu era uma outra pessoa, uma pessoa que já não pertencia mais àquele meio em que eu havia crescido. Também não pertencia ao meio dos meus amigos. Eu havia me tornado algo diferente. 

   Enquanto eu pensava nisso o reitor anunciou o início da cerimônia. Os professores homenageados foram convidados a compor a mesa, e os oradores de cada turma foram chamados à frente. Casualmente, com a sensação da mais doce vitória porém eivado de arrogância, levantei-me e dirigi-me à cadeira a mim destinada. Depois de tantas algúrias, caminhava perante os demais alunos não como um vencedor, não como um conquistador, não como um ascendido, não como um iluminado. 

Eu era, finalmente, eu mesmo.


Luís Fernando Carvalho Cavalheiro é professor de Filosofia e escritor nas horas vagas. Embora tenha algum talento para poesia e literatura fantástica, prefere escrever contos de horror. Já publicou em três antologias da Editora Andross, e concorreu a dois Prêmios Strix em 2017.

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2 Comentários

  1. Que texto maravilhoso! O que mais gostei foi a percepção do protagonista em ver que ele mesmo possuía uma versão tão preconceituosa quanto ele percebia nas outras pessoas. É impressionante como as pessoas vivem sua realidade e com suas percepções julgam os outros. Não vou me abster, eu já fiz isso, mas a gente aprende a entender que todos temos nossas questões e o mais importante é se permitir a aceitar a diferença.
    Por último, preciso dizer, amei o protagonista ser formado em matemática, eu estou finalmente começando a minha licenciatura nos números. =)
    G. J. Moreira

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    1. Oi Gab, seja bem vinda!

      Realmente é um texto de profunda reflexão de como não só ver a vida, mas a nós mesmos e nossas atitudes.

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