Doce Espera: diário da mamãe e do bebê

[Contos de Janeiro] Do abadá à fantasia por G. J. Moreira

Olá Leitores!

E nossa semana de contos começa hoje! Sejam todos bem vindos!

Iniciando com um conto que não foi baseado em fatos reais, mas que de certa forma é baseado na forma de viver não só de brasileiros.

Do abadá à fantasia por G. J. Moreira


   Olho para a janela e vejo a vista de, praticamente, toda a cidade. Morar no alto do morro que essa vantagem, apesar dos milhares de degraus que preciso subir, de vielas que tenho que percorrer e do esgoto escorrendo pelo chão que desvio. Estar tão alto na encosta é estar mais perto do céu, onde os sonhos habitam. É preciso sonhar para conseguir viver essa vida difícil que é a minha. Hoje, no entanto, seria uma noite de alegria. Nem só de tristeza é feita a vida, às vezes, bons momentos se costuram entre tecidos de dificuldade.

   Uma festa era tudo que precisava. Uma amiga me fez o convite para me distrair, pois ela sabia que eu não estava em um bom momento. Amigos são especiais, eles sabem quando precisamos de algo antes mesmo de nós mesmos sabermos. A festa não seria como qualquer outra. Festa à fantasia. Por um momento, murchei, não tinha uma fantasia legal para vestir nem dinheiro para comprar um traje que fosse interessante. Pensei em dar uma desculpa, mas uma luz veio à minha mente: eu tinha os abadás! Como pude me esquecer? Estava decidido, iria com um deles, representando uma baiana. 

   Olhei para minha cama, eram diversas roupas de baiana, pois como desfilava em várias escolas de samba, era comum fazer roupas novas para visitas a quadras de coirmãs do samba, feijoadas, festas de passistas e de outros segmentos de agremiações carnavalescas. Como nunca perdia nenhum evento, fui fazendo uma roupa aqui e outra roupa ali. Resultado: metade do meu apertado guarda-roupa era de trajes de carnaval. Ri, talvez estivesse ali grande parte do dinheiro que vivia dizendo que não tinha. Não me arrependo, o samba é minha religião, me faz tão bem que eu poderia muito bem gastar dinheiro com alguma coisa que me satisfizesse.

   A saia branca comprida, no estilo de roupa cigana, cobriu parte do meu corpo descoberto. Tive que respirar fundo, a saia estava um pouco apertada. Também pudera, estava uma baleia e não era exagero. Sempre fui gorda, desde criança, já estava acostumada com os apelidos maldosos e brincadeiras sem graça. Ultimamente, no entanto, a gordura começou a me incomodar de verdade, pois minhas roupas estavam apertando e eu, como sempre, não tinha dinheiro para comprar outras. A não ser os uniformes de carnaval, minha mente me recordou. Começaria um regime rigoroso na segunda-feira. Como sempre. E, como sempre, na quarta-feira já teria desistido.

   Revirei as vestes em cima da minha cama, à procura de uma blusa especial. Sim, eu tinha diversas à minha disposição, mas eu queria... Esta! Ela é perfeita! O tecido fino e com uma leve transparência com desenhos retangulares brancos faria um ótimo conjunto com minha saia. Peguei dois torços de cabeça, um branco e outro dourado e fiz o turbante. Olhei para meu espelho vagabundo, que estava mais embaçado do que nunca. Senti-me poderosa. Aquele era meu verdadeiro eu. A mulher do samba e das raízes africanas. Naquele instante, senti meu sangue ferver, como se meus antepassados estivessem ao meu lado, vendo que eu os representava com orgulho. Bastavam apenas os colares e as argolas para ser uma legítima baiana.

   Uma caixa de sapato guardava meus colares. Eles eram como as guias de santo, só que feitos com pedras compradas no centro da cidade. Entre as ruas do SAARA, encontrei diversas promoções de pedras e fiz meus próprios cordões. Escolhi três para comporem meu visual: um verde, outro amarelo e um branco. Na boca, o batom vermelho vivo e a maquiagem básica completou a minha fantasia. Estava me sentindo Cinderela indo para o baile. Aquela seria a minha noite de sonhos, estava pressentindo.

   Desci o morro exultante, nada me tiraria a felicidade daquela noite mágica. Cumprimentei alguns vizinhos alegremente e desviei de algumas crianças que brincavam com a bola no meio das ruas estreitas. Era o início da noite, mas precisava sair cedo para chegar na hora. Afinal, era uma descida longa até o ponto de ônibus. Eu o pegaria até a casa da minha amiga e, de lá, pegaríamos um táxi até a festa. Talvez eu a convencesse de que pudéssemos ir de ônibus e apenas voltar com o carro amarelinho. A esperança era a última que morria.

   Paro no local de espera da condução e estou sozinha. Olho discretamente meu celular colocado no peito e vejo que ainda é cedo. Aquele ponto geralmente ficava cheio. De repente, meu ônibus se aproxima e faço sinal. Ele passa e não para. Xingo mentalmente até a décima geração do motorista. A rua estava vazia. Por que ele não parou? Um homem vem em direção ao ponto e percebo que ele hesita em ficar no mesmo local do que eu. Ele não fica. Claro, era a roupa. Antes, me senti poderosa com minha fantasia, mas era porque não estava sob a avaliação de um mundo burro e preconceituoso. A raiva me consome. 

   Outro ônibus passa direto. Obviamente, ele também acha que sou uma macumbeira pronta para jogar um trabalho nele. Deus, quanta ignorância! Decido ir andando para casa da minha amiga, afinal, não é longe, mas o caminho não era dos melhores para se andar sozinha. Enfim, não me deixo abater e tento recuperar a alegria que tinha quando olhei meu reflexo. Vejamos o lado positivo, economizo uma passagem. Isso é o suficiente para me alegrar, adoro quando poupo dinheiro. 

   Cinco minutos é o tempo para me arrepender de meu ato pão-duro, vejo três pessoas estranhas vindo em minha direção. Com certeza, um assalto. Desgraça para pobre é pouco mesmo. Os homens se aproximam e escuto apenas o barulho dos meus cordões balançando conforme caminho. Começo uma oração à São Jorge, clamo para estar vestida e armada com as armas de Jorge e que meus inimigos não me alcancem. Claro que, os inimigos do momento, no caso, eram os assaltantes. O pedido deu certo, eles atravessam a rua e percebo que eles se benzem quando olham para mim. Começo a gostar da ignorância das pessoas, pelo menos, ela fez com que eu ficasse livre de um roubo.

   Chego à portaria do prédio da minha amiga e o porteiro parece mais branco que um papel quando me olha. Devo fingir que estou recebendo santo para fazer o homem ter um infarto? Reprimo o pensamento rapidamente, pois ele me avisa que minha companheira de festa está descendo. Ele foi salvo por ela. Sento no sofá e aguardo a chegada da minha amiga. Um casal passa em direção aos elevadores e ignora meu desejo de boa noite. Nem me abalo mais. Começo a achar graça da situação. Se eu estivesse vestida de fadinha, tudo bem, né? Não, tudo péssimo, eu seria a visão do inferno com vestidinho curto e asinha nas costas. Talvez, depois da minha dieta, possa me arriscar a ser a Sininho. Mentira, eu nunca vou emagrecer mesmo.

   Finalmente, alguém me elogia, nem acredito. Foi minha amiga, talvez não conte muito, mas me sinto feliz quando ela diz que pareço a dona do terreiro. Não tenho nenhuma religião, mas tenho aquela quedinha pela turma do batuque. Então, ser dona do terreiro é um baita elogio. Nem discuto com ela a opção de irmos de ônibus, pois desapego do dinheiro ao lembrar que fui ignorada pelos ônibus ao vir para casa dela. O pedido do carro pelo aplicativo é atendido prontamente. Entramos no carro e o motorista não consegue disfarçar o olhar nervoso em minha direção. Minha amiga percebe e nos olhamos resignadas. 

 “O que você acha de eu jogar um colar desses na direção dele?” — pergunto, através do aplicativo de conversação.

 “Aí ele bate com o carro e acabou nossa noite de festa!”

   Ela tem toda razão. Quando paramos no sinal de uma encruzilhada, vejo um despacho colocado ali e não me contenho:

 — Ainda bem que ninguém mexeu no meu trabalho, amiga. Hoje que eu agarro aquele homem!

   Vejo o suor escorrer pela testa do motorista e gargalho. Minha vingança. O riso para esquecer a dor do preconceito. Aquele conceito prévio que sofro por ser pobre, negra e estar vestida de macumbeira, como muitos dizem. Mantenho um papo animado com minha amiga, enquanto minha mente reflete que a sociedade tem um longo caminho para percorrer. Por que a cor de uma pele é mais importante do que o caráter? Por que a quantidade de grana na carteira torna a pessoa mais interessante? Por que a quantidade de gordura acumulada na barriga torna uma pessoa atraente ou não?

   Meu momento reflexão termina quando soltamos em frente ao local da festa. Nem agradeço ao motorista ou desejo bom trabalho, nem sempre podemos fingir que está tudo bem e a minha falta de educação é o meu protesto. Os melhores protestos nem sempre são os mais barulhentos. Os silenciosos também incomodam.

   Na festa, sou tratada como rainha, pois minha fantasia é a mais caprichada. Engraçado que entre os doidos nos sentimos mais sãos. A festa era meio alternativa, assim como o pessoal que a frequentava, e percebi que eu e eles sofríamos com a sociedade hipócrita. Éramos diferentes do padrão. Éramos excluídos. No entanto, juntos, éramos uma unidade, todos os ignorados eram alguma coisa quando unidos.

   A noite foi realmente maravilhosa, pois dancei muita música boa e me diverti com aquelas pessoas que antes eram estranhas, mas que se tornaram íntimas por causa da dor da discriminação que nos unia. Seja eu, com a minha pele negra, ou eles, com atitudes ditas loucas, ali todos estávamos curtindo os poucos momentos de liberdade em meio à opressão disfarçada de liberdade de expressão.

   O momento sublime foi quando minha fantasia ganhou o prêmio de melhor traje daquela noite. Subi ao palco e agradeci a todos pela oportunidade de ser reconhecida pela representação que era muito escorraçada. Olhei meu troféu singelo e pedi que, um dia, meu maior prêmio fosse poder andar na rua sem ser julgada pelo meu corpo, pela minha cor ou pela minha roupa. Suspirei. Sim, era um pedido ousado, mas eu era abusada mesmo. Levantei meu troféu e sorri: aquela era uma pequena vitória e deveria ser comemorada. Depois lutaria por causas maiores. A vida era boa, no fim das contas, bastava ter fé que um dia era apenas uma pequena parte de uma longa vida.


G. J. Moreira nasceu no dia 8 de março, sábado das campeãs do carnaval de 1988. Como o mundo não estava preparado para alguém tão apaixonada por carnaval, não houve esse desfile e sim, uma chuva torrencial no Rio de Janeiro. Gabriella se define como uma metamorfose ambulante que a cada dia rompe preconceitos para se tornar uma pessoa melhor, além de ter o carnaval como estilo de vida e o deboche como arma para sobreviver nesse mundo doido.





Comentários

  1. Mesmo tendo um estilo diferente, me identifiquei bastante neste texto! Uma hora os olhares atravessados perdem a graça, e o que resta é a nossa capacidade de viver a nossa vida sem nos preocupar com a opinião alheia.

    E puxando para o meu lado, acredita que tem uma música do Metallica que fala disso? Segue um trecho:

    “Nunca me importei com o que eles dizem
    Nunca me importei com o jogo deles
    Nunca me importei com o que eles fazem
    Nunca me importei com o que eles sabem
    E eu sei”

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