Doce Espera: diário da mamãe e do bebê

[Contos de Fevereiro] Perdendo a Cabeça por G. J. Moreira

Olá Leitores!

Começo as publicações da Seleção de Contos de Fevereiro com esse conto maravilhoso da Gabriella. Posso me adicionar ao grupo de pessoas que não curtem o carnaval, e aquele brilho e as músicas, não nasci perto dessa cultura e por isso passo longe dos costumes. E foi por isso que eu coloquei esse tema para esse mês.

Não é porque eu não curta, que outras pessoas não curtam, e melhor que isso, porque não me dar a oportunidade de ver um desfile por outros olhos? E confesso que melhor que os de Gab, não há. Mesmo não estando em minha cultura, eu pude sentir a alegria que ela transmite através de suas palavras, e com a minha imaginação ao ler, quase pude tocar a saia da baiana.

Ótima leitura a todos! E sejam bem vindos à Seleção de Contos de Fevereiro!

Perdendo a Cabeça por G. J. Moreira

Capítulo 1: Onde está minha cabeça? 


 — Ei, psiu! — O rapaz finalmente me notou. — Tem como você pegar aquela cabeça ali? 

 — Sou eu? — Ele apontou para si e confirmei. — Minha senhora, aqui tem várias cabeças. — Continuou ao se aproximar do amontoado perto do meio-fio. — Serve qualquer uma? 

 — Claro que não! — respondi rispidamente e me dirigi para perto o mais rápido que pude com a minha roupa. — A minha tem uma fita vermelha perto da orelha. — Ergui a mão direita, indignada. — Deus me livre usar a cabeça dos outros! Tem um monte de velha com cabelo ensebado e cheio de piolho. 

   O riso alto do garoto passou despercebido pelos que estavam à nossa volta. Todos pareciam entretidos em suas tarefas: outras companheiras de ala vestiam-se com a ajuda da equipe do barracão, nossa diretora berrava para que as componentes parassem de conversa e se arrumassem, os ritmistas costuravam por entre nós, levando os instrumentos à dianteira da concentração, diversas pessoas tiravam fotos e bebiam aquela cervejinha antes do desfile. 

   Lá estava em mais um desfile. Essa seria a terceira escola a desfilar. A primeira, na sexta-feira, foi com a Alegria da Zona Sul. No mesmo dia, mais para o final da noite, rodei pelo Império da Tijuca. Hoje seria a vez da Estácio de Sá, minha escola de coração. Domingo, Beija-Flor; segunda-feira, Salgueiro, e, na Terça-Feira Gorda, havia me comprometido a sair pelo Arrastão de Cascadura. Como me meto em tanto desfile? 

 — Oh, tia — o homem me segurou no braço e a voz masculina me trouxe à realidade —, não estou achando fita em cabeça nenhuma. Não tenho o dia todo, tá vendo? — Olhei para a direção apontada por ele, o carro abre-alas da escola se deslocou mais um pouco. Nossa hora estava chegando. 

 — Meu garoto, olha direitinho, não consigo me abaixar e mexer aí com essa saia aqui. — Abri os braços mostrando minha impossibilidade devido àquela ter sido uma das roupas mais pesadas vestidas por mim até aquele momento da folia. Talvez o cansaço influenciasse um pouco minha percepção, mas, uma coisa era certa, meus movimentos estavam comprometidos com a vestimenta, parecia quase um mini-carro alegórico. 

   A fantasia, feita de uma renda vermelha e branca, toda trabalhada com um tecido estampado em dourado e o costeiro, seguindo o mesmo degrade, fazia com que tivesse certeza da conquista de um prêmio pela bela indumentária. Mesmo que fosse um sacrifício cada passo dado. Não queria nem pensar como andaria, rodaria e cantaria na Avenida. Uma coisa de cada vez. Primeiro, precisava achar minha cabeça. Sem ela, não desfilaria. 

 — Por que eles fazem uma roupa assim? — questionou o rapaz, revirando as cabeças empilhadas. — Dá pra ver o seu sofrimento, dona... 

 — Teresa, meu rapaz. — Encostei meus tornozelos na calçada. Agora era só sentar e rezar para não tivesse nenhum bueiro perto, tinha pavor de baratas. — O carnavalesco não deve ter mãe, só pode! 

   Sentei, graças a Deus. O meio-fio alto na parte onde as baianas estavam concentradas só podia ser uma bênção. Os joelhos agradeceram o momento de folga. Olhei em volta, admirando as fantasias da minha escola e os olhos encheram de água. Sempre era assim mesmo, me tornava muito emotiva ao estudar a concentração. Naqueles momentos anteriores ao desfile se podia sentir o ânimo da escola. Quando a parte plástica não estava satisfatória, os componentes eram combalidos. Não era o nosso caso, estávamos divinos naquela madrugada. Tudo tão bonito e caprichado que o sonho de voltar ao Grupo Especial pareceu tangível. 

 — E o seu nome? Desculpe a falta de educação — disparei, abanando o rosto com a mão esquerda —, mas essa roupa nem me deixa pensar direito. Cada passo é um martírio. Meus joelhos não estão aguentando. O calor também está de matar! Sabe, acho que estou ficando velha pra isso, talvez seja hora de ir pra Velha-Guarda. 

   Silenciei, percebendo que o rapaz me olhava. Talvez quisesse falar algo. Tinha a sensação de ter feito uma pergunta a ele, mas não tinha certeza. Eu era um pouco tagarela. Com o momento de descanso, o corpo esfriou um pouco e o vento suave acariciou a face marcada com o passar dos anos. Uma brisa ousada subiu por debaixo da saia. A sensação foi ótima, ainda mais com a roupa abafada destinada às baianas. Infelizmente, o cheiro do Canal do Mangue também se fez presente e fiz uma careta. 

 — Talvez seja mesmo a hora, dona Teresa. Sou Júlio, a propósito. — Verdade, havia questionado o nome do garoto. Ele parou a busca e sentou ao meu lado, estendendo a cabeça adornada pelo pano dourado e branco, com a fita rubra. — Veja se não perde mais a cabeça. 

   Sorri em agradecimento. Ficamos em silêncio, observando a movimentação dos foliões se arrumando nas alas, os carros alegóricos empurrados conforme a escola se organizava para o cortejo. Éramos a próxima escola a adentrar na Sapucaí e quarta daquela noite. O som de um samba de raiz tocava no Terreirão do Samba. Ainda arranjaria um tempinho para ir curtir uma noite de shows até o fim do carnaval. O mundo à nossa volta fervia e nós assistíamos tudo como as pessoas presentes no setor zero, fascinadas com aquele mundo de ilusão criado pelo carnavalesco. 

 — Tenho que voltar lá pra frente, devem estar precisando de mim — admitiu Júlio, ao apoiar as mãos na calçada para se impulsionar a levantar. — Posso perguntar uma coisa, dona Teresa? 

   Olhei o rapaz magro, de pele negra e cabelo Black Power. De pé, bateu as mãos na calça branca para limpar a sujeira acumulada na região traseira. Ele pareceu ansioso. 

 — É seu primeiro ano, Júlio? — Ele anuiu. — Claro que pode, mas se for pra saber se é normal o coração descontrolado — a expressão dele confirmou minha suspeita —, é sempre assim. Até hoje sinto isso. Todos esses anos, todos os desfiles, seja aqui ou no Especial ou lá em Intendente. Sempre acho que terei um piripaque. 

 — Ainda bem!— Júlio abriu um sorriso relaxado. — Estava achando que era um infarto. — Eu ri. — Para a senhora deve ser mais fácil, há quantos anos desfila? 

   Uma gritaria me impediu de responder. Os torcedores do setor zero saudaram ao verem a escultura de um imenso São Jorge passar e eu agradeci ao Santo Guerreiro por poder desfilar perto dele, enquanto fazia as contas para responder Júlio. 

 — Como baiana, são vinte e cinco anos — ele arregalou os olhos —, mas saio desde meus vinte anos. Isso significa que — complementei, pensando que o menino não teria coragem de perguntar minha idade, mas pareceu sinceramente curioso — são quarenta e cinco anos de Sapucaí. 

 — Tenho vinte e seis anos. — Júlio disse simplesmente. — A senhora está muito bem. 

   O diretor de carnaval gritou com a equipe da força da segunda alegoria, preocupado com os galhos de uma árvore não podada que poderiam danificar a escultura do carro alegórico. O clima da concentração variava conforme a função da pessoa: os componentes estavam todos alegres, afinal, o grande dia chegara; já os diretores de harmonia, geralmente, estavam bem estressados, pois, todo treinamento, de quase cinco meses, era posto à prova. 

   Vi meu sobrinho Osvaldo passar com os inconfundíveis fones de ouvido no estilo do Galvão Bueno, gritando que a Cubango havia colocado o último carro na pista. Isso significava que, mais um pouco, a sirene soaria para entrada da nossa bateria Medalha de Ouro. 

 — Valdo, meu menino! — Balancei os braços, ainda sentada na calçada, tentando chamar atenção do diretor. — Júlio, puxa ele ali! — Apontei para o homem com o uniforme da harmonia. Tadinho, a operação não o impediu de continuar mancando. 

 — Cara, você tá maluco? Eu preciso ir lá pra frente — gritou meu parente, tentando se desvencilhar de Júlio. Ao perceber que eu era o motivo da interferência, veio na minha direção. — Oh, tia, benção, benção! Me desculpa, estou com a cabeça a mil! 

 — O que aconteceu, querido? 

 — Nada. — Ele passou a mão na cabeça raspada e apertou a correntinha do nosso santo protetor. Com certeza havia acontecido algo. Trocamos um olhar e ele admitiu: — A escultura do segundo carro bateu na árvore e danificou a cabeça do soldado. Não acho esse carnavalesco por nada nesse mundo. Eu odeio esses carnavalescos! — finalizou ele, visivelmente alterado. 

 — O Miltinho estava perto do Abre-Alas pelo que soube — interrompeu Júlio. 

 — Vou atrás daquele dragão, obrigado, rapaz — respondeu Osvaldo, vendo o garoto com outros olhos. 

 — Você não é mais um garoto, Valdo, se acalma — comentei, pedindo com as mãos um pouco de paciência ao sobrinho. — Nosso cavaleiro Jorge nos guiará! 

 — Que Ele lhe ouça, tia! — Osvaldo se afastou, após desejar com bom desfile e beijar minha bochecha, para averiguar se a informação dada por Júlio era real. 

 — Acho que agora posso ir, né, dona Teresa? 

 — Ainda não, preciso que você entre embaixo da minha saia.



Capítulo 2: Debaixo da saia da baiana


   Olhei para o céu, a lua de São Jorge ali estava para abençoar o desfile da escola do São Carlos. O círculo prateado roubou toda minha atenção quando conferi as horas no relógio da Central.

 — A senhora carrega muita coisa, dona Teresa! — admirou-se Júlio, com a voz abafada. — Simplesmente não encontro. Não acha que está — ele saiu da armação que sustentava a parte debaixo da minha vestimenta — na hora de parar de fumar?

 — Por Deus, já me basta marido e filho me enchendo o saco com isso. Até você, Júlio? — Coloquei as mãos na cintura. — Desamarra minha bolsa então!

   O garoto entrou de novo debaixo da saia e senti as mãos tocando a cintura na região do nó dado mais cedo quando me arrumaram com a fantasia. Como havia me esquecido de pegar o cigarro? Senti a faixa afrouxar e o menino saiu da fantasia, oferecendo a bolsa. Não precisei vasculhar nem por trinta segundos, o cigarro estava condicionado no bolsinho que havia dito que estaria.

 — Vocês, homens, nunca prestam atenção no que falamos! — exclamei, mostrando o maço. — Dá vontade de esfregar na sua cara, estava bem onde tinha explicado.

   Júlio deu um sorriso amarelo e coçou a cabeça, se apoiando no meio-fio, ainda agachado.

 — Minha mãe fala a mesma coisa quando me pede algo.

 — Só pode ser defeito de fabricação, meu marido e o meu filho são iguais! — revelei, acendendo o cigarro para degustar antes do desfile. Agora faltava pouco, não se ouvia mais o samba da Cubango e as pessoas estavam quase todas prontas à nossa volta.

 — Eles não desfilam com a senhora? — O garoto segurava minha bolsa no colo.

 — Não, eles estão na concentração do Império Serrano. É sexta escola de hoje. É desse lado mesmo — apontei para o lado esquerdo —, mas ainda estão fora do curral. — Vi a cara de interrogação dele. — Esqueci que é a sua primeira vez. Está vendo essas grades verdes nos separando das outras pessoas? — Assentiu. — Toda a Presidente Vargas é a concentração, mas, como somos a próxima escola, estamos no curral. Agora se enfia aí debaixo e prende essa bolsa.

   Júlio pegou o aro maior da saia e o estendeu para conseguir cumprir minhas ordens. Eu ainda estava com a cabeça encaixada no braço, só a colocaria quando estivesse na hora de entrar, pois aquela cruzeta espremia o cérebro. O que a gente não passava pela escola do coração?

 — Ufa! — Ele secou o suor, ficando de pé. — Por que a senhora traz linha, agulha e o escambau naquela bolsa?

 — Sou uma mulher prevenida e trago o kit costura — revelei ao levantar a cabeça para encará-lo. — Já desfilei em escolas que a roupa estava em petição de miséria e precisei alinhavar o que estava solto. — Antes de ele continuar com os questionamentos, prossegui: — O chinelo, obviamente, é para dar liberdade aos meus pés depois dessa tortura que eles chamam de sapato. 

 — E o saco preto? 

 — Fique tranquilo que não vou matar ninguém. — Júlio riu. — Serve para colocar a fantasia ao me desmontar lá na dispersão. A gente precisa entregar a roupa completa se quisermos desfilar no próximo ano. — Soltei uma baforada de fumaça.

   Três cavaleiros passaram correndo ao nosso lado com as armaduras reluzentes. Estavam com cara que seriam componentes da comissão de frente. As pessoas passarem apressadamente com a chegada da hora do desfile era normal. Alguns não encontravam a ala entre aquele mar de fantasias e carros alegóricos. Havia também muitos que compravam fantasias e não sabiam a posição de desfile. Fantasias entregues na própria concentração e outros imprevistos tornavam emocionantes os instantes antes do cortejo carnavalesco.

 — É muito difícil ser baiana? — questionou, ainda acompanhando a correria dos homens com as capas vermelhas desfraldando conforme avançavam até a cabeça da escola. — Minha mãe sempre fala que quer ser, mas...

 — Passa o telefone dela, baiana está em extinção. Estou falando sério — continuei quando ele me olhou incrédulo —, muitas deixaram de desfilar depois que entraram pra igreja. O que, pra mim não tem nada a ver. Dá pra rezar e rodar, mas cada um com seu cada um, né? Por isso, tem muita baiana novinha em ala hoje em dia. Aqui mesmo tem uma com trinta anos, se não me engano.

   Ele me ajudou a levantar e arrumou os babados da saia. Tiramos uma selfie, que seria enviada para o telefone do meu filho. 

 — Vou falar com a minha mãe. Ela vai poder realizar o sonho de rodar na Avenida. Vocês não ficam tontas de rodarem o tempo todo?

 — Por que todo mundo acha que a gente é pião e fica rodando o tempo todo? — Puxei-o pelo braço, de forma que ele se abaixasse e segredei perto do ouvido: — Nós rodamos no refrão. 

 — Mas — ele se endireitou —, mesmo assim, são dois refrãos, não são? 

 — Não diga que te falei, mas metade do refrão vou para um lado e metade para outro. Nem todas são assim, mas é o meu jeito pra não ficar tonta. — Dei dois tapinhas no braço do menino. — Diz pra sua mãe que só precisa de muito fôlego, pois os carnavalescos ainda acham que fazem roupas pra homens.

 — Homens? — repetiu, como se confirmasse se o que falei era certo. — Mas na ala de vocês só pode sair mulher ou estou enganado?

 — Ah, meu querido, lá atrás era muito comum homens serem baianas. Tudo para defender a escola de ataques das rivais.

 — Que tipo de ataque?

 — Roubo das bandeiras da escola. O pavilhão de uma escola de samba é o símbolo máximo da agremiação, roubar uma bandeira é o mesmo que tirar a identidade dela.

 — Nossa, não sabia de nada disso. Por isso o mestre-sala protege a porta-bandeira?

 — Exatamente. Viu, você sabe alguma coisa. Antigamente, o mestre-sala era chamado de baliza e a porta-bandeira de porta-estandarte. Bem, no começo, o baliza e o porta-estandarte eram homens para conseguirem enfrentar a polícia. O samba nem sempre foi bem visto pelas pessoas. Pensando bem, agora também tem muita gente que não vê isso aqui — abri os braços abarcando a concentração — com bons olhos. Dizem que é pecado. Pecado, Júlio, é matar e roubar o dinheiro dos outros.

 — É, a senhora tem toda razão. Eu mesmo tinha outra visão do carnaval. — Abriu um sorriso. — “Se é pecado sambar/A Deus eu peço perdão/Eu não posso evitar/A tentação”.

 — Você me vem com Beth Carvalho e diz que não sabe nada de samba. Pare de esconder o jogo, menino!

 — Sou sambista que ouve samba em casa, na vitrola do meu avô — confessou. — Mas hoje resolvi vir pra cá, sentir a batida da bateria e me arrepiar com o batuque. 

 — Fez muito bem. Está satisfeito? — O garoto confirmou. — Você precisa ver quando começar o desfile e você passar na frente da bateria. 

 — Dona Teresa, vamos voltar ao nosso assunto, só com as saias das baianas se impediam os ataques dos rivais?

 — Claro que não, as saias rodadas serviam para esconder as navalhas que os homens traziam presas às pernas. 

 — Jesus Cristo! — Júlio estava esbabacado. — O pessoal levava a sério mesmo essa questão de proteger a bandeira, né? — Apenas balancei a cabeça, confirmando. — Então, depois das coisas acalmarem, retiraram os homens da ala?

 — Olha, até onde sei, foi no fim da década de oitenta que a LIESA proibiu de fato. Uns dizem que foi por causa de um bigode e outros, bem, outros dizem que a ala das baianas se tornou o disfarce perfeito para fuga de traficantes.

 — O quê? Do jeito que as coisas são aqui, acho que a história dos traficantes faz mais sentido. A senhora desfilou na escola que aconteceu isso? 

 — Não, meu querido, mas é lenda urbana, todo mundo comenta. O ano foi oitenta e oito e a escola, a Unidos da Tijuca. Uma amiga minha estava lá e... — A integrante do departamento feminino pediu que eu tomasse o lugar na última fila, na ponta direita. Júlio me ajudou a descer da calçada, um grande desafio com a roupa que vestia, enquanto nos dirigíamos ao local referido pela mulher. — Voltando, essa minha amiga disse que a ala era composta por muitas senhoras e o presidente de lá colocou trinta homens misturados pra ajudar na evolução. Infelizmente, um deles se esqueceu de raspar o bigode e virou um escândalo, acabando com a brecha no regulamento. 

 — Esse bigodudo era o traficante? — Eu neguei. — Quero saber mesmo da história do traficante, dona Teresa, não me enrole!

Resolvi que não poderia adiar o encontro da cabeça adornada em dourado e branco com a minha cheia de cabelos brancos e prateados. Peguei no peito esquerdo um pedaço de espuma e coloquei no ponto onde a cruzeta mais incomodava. Eu tinha os truques guardados na manga. Ou no peito. 

 — Chega de suspense! — ralhou Júlio enquanto eu ajeitava o chapéu.

 — Mas o povo gosta mesmo de um bafão, né? — Dei um sorriso debochado. — A outra versão é que alguns traficantes se vestiram de baianas e levaram armas amarradas às pernas. Minha amiga mesmo não viu, mas uma amiga dela disse que tinha uns rapazes meio mal encarados na ala. 

 — Eles devem ter tirado inspiração do passado!

 — Não tenho dúvidas. — As baianas começaram a caminhar em direção ao joelho.

 — Foi um prazer conversar com a senhora, dona Teresa — Júlio pegou na minha mão e deu um beijo carinhoso —, mas está na minha hora. Bom desfile! A senhora ainda vai desfilar em alguma outra escola? 

 — Hoje, que eu saiba, não! — O garoto gargalhou. — Estou sempre aberta pra novas propostas. — Passei a mão no rosto dele. — Que Deus te abençoe, querido, e você se divirta bastante. 

— Muito obrigado, mas, como sou apoio de destaque, acho meio difícil. 

   Apertamos o passo, já que escola deu uma esticada.

 — Depois do desfile começar, você fica no chão e pode aproveitar. Apenas verifica se o Santo Antônio está bem encaixado.

 — Santo Antônio? Achei que a escola estivesse homenageando São Jorge — confessou ele.

 — Santo Antônio é o ferro que fica em cima do queijo e serve para o destaque segurar. 

 — De onde vocês tiram esses nomes?

   Outro diretor de harmonia informou que iríamos entrar, impedindo de eu responder a Júlio, que me deu as costas e saiu correndo em direção ao viaduto, pois o carro abre-alas, local onde ele prestaria assistência, estava naquele instante ultrapassando o obstáculo de concreto. Todos os carros das escolas concentradas no lado do “Balança Mas Não Cai” tinham aquela prova de fogo. 

   Meu amigo fotógrafo se aproximou, feliz por me encontrar. Ainda era uma das poucas que preferia a fotografia física para eternizar minhas aventuras carnavalescas a tirar registros pelo celular. Não adiantava, celular sem botão me dava uma surra. Após as poses e a passagem dos dados para que ele entrasse em contato quando revelasse as fotos, o som da Sapucaí estava disponível para nosso intérprete. Na verdade, o presidente ainda discursava quando o céu foi abrilhantado e as palavras do comandante engolidas pelo barulho dos fogos de artifício. O que era um alívio, o presidente tinha uma voz irritante, um tanto fanha.

   Avançamos. O coração pareceu bater em um andamento mais rápido que o da bateria. Os sapatos das baianas arrastavam contra o asfalto da Avenida Presidente Vargas, lembrando-me da história que as sandálias das primeiras baianas marcavam o ritmo da bateria. Comecei a chorar. Estava demorando. O choro de alegria fez com que o canto ficasse um pouco rouco pela voz embargada. 

   Depois da virada do joelho estava ali no lugar que mais gostava de ficar. Não importava quantas vezes já havia passado por aqueles setecentos metros, mas, toda vez que olhava o setor um nos recepcionando, parecia magia. Por um instante, dava para se sentir a pessoa mais importante do mundo. Como se todos estivessem lá para me verem rodar. 

   Cantei o samba com garra, rodei com todas as forças e me esqueci do sapato incômodo e da cabeça torturante. Transcendi. A sensação de estar fora de mim mesmo estando consciente dos movimentos não havia como descrever. Talvez fosse uma questão de se conectar com a alma e agir pela emoção. 

   O momento de deslumbramento começou a escapar quando estava próxima à Apoteose e percebi que meu corpo não estava bem. Estrelinhas surgiram na vista e o suor frio escorreu pelas costas. Os ouvidos não ouviam mais o samba entoado pelas caixas de som ou as expressões dos espectadores. A boca secou. Precisava de água. O peso da fantasia triplicou, parecia carregar noventa quilos.

   Não poderia cair agora! A queda de uma baiana sempre causava transtornos para escola e não queria prejudicar a minha. Mais um pouco, mais um pouco. O calor da fantasia estava insuportável. O tecido pinicava os braços e os abaixei, parando de cumprimentar o público. A cabeça me esmagava e o sapato torturava os pés cansados. 

   Senti o corpo pesado. O breu dominou minha mente. 

   Silêncio.



Capítulo 3: Uma escapulida


   Barulho. Várias vozes ao mesmo tempo. Pisquei. Branco. Pisquei. Tudo branco. Senti-me leve como uma pluma. Ou uma pena. Pisquei mais algumas vezes. Onde estava? 

 — Dona Teresa! — focalizei um homem de branco me olhando. — A senhora consegue me ouvir? Entende o que digo? 

   A mão macia do homem segurou a minha, ela estava quente. A minha estava fria. 

 — Acho que... — comecei a responder quando recordei o que fazia antes. — Meu Deus! E o desfile? Caí em frente do jurado? Nós vamos perder ponto?

 — Acalme-se, está tudo bem — pediu a enfermeira.

 — A senhora caiu já na Praça da Apoteose — informou o maqueiro com a camisa laranja e a calça preta. Aquela combinação de roupas reconhecia de longe. Eles sempre acompanhavam a ala das baianas para socorrer quem se sentisse mal. Pelo jeito, dessa vez, havia sido eu.

 — Fique tranquila, os maqueiros foram rápidos e a escola não deve ser prejudicada, ao contrário da senhora — finalizou, em tom sério, o médico. 

 — Desde quando o senhor entende de julgamento, doutor?

 — Sua pressão está muito alta — o médico consultou a prancheta, ignorando minha pergunta —, a senhora é hipertensa, dona Teresa?

   O maqueiro e a enfermeira saíram, percebendo o tom do doutor, com a desculpa de que atenderiam outra ocorrência.

 — É claro que não! — Sentei na cama e vi o soro colocado no braço esquerdo. — Pode tirar isso aqui? Já estou ótima e preciso entregar minha fantasia. 

   Olhei para o pronto-socorro e estávamos nós dois na saleta de atendimento localizada dentro de um container. A mesa de madeira localizada à minha esquerda tinha o estetoscópio no centro. Outra maca encostada na parede e uma estante repleta de remédios completou o cenário. O que mais chamou atenção foi minha fantasia jogada ao chão com os panos vermelhos, brancos e dourados enrolados e a anágua aparente. Parecia tudo ali, exceto...

 — Onde está minha cabeça? — questionei ao desviar do amontoado no chão e olhar o profissional de saúde.

 — No mundo da lua, dona Teresa, pois a senhora não parece ter processado mais nada do que disse, não é? — Pisquei. Ele havia falado mais alguma coisa? — A senhora será transferida para o Souza Aguiar e ficará em observação por tempo indeterminado, já que não é hipertensa. Estamos entendidos?

   Olhei para o moleque abusado querendo mudar meus planos de carnaval. Quem era aquele fedelho para falar assim comigo?

 — Não, doutor, não estamos. — Tentei levantar e ele impediu, colocando a mão no meu ombro direito. — Desfilo mais tarde na Beija-Flor! — O médico levantou a sobrancelha. — Preciso ir pra casa descansar — supliquei.

 — Graças a Deus! — Júlio entrou pela porta. — Resgatei sua cabeça novamente.

   Sorri. Era bom ver um rosto familiar.

 — Esse rapaz é seu parente?

 — Afilhado, doutor. — Júlio encarou os próprios pés. — Ele me levará pra casa e prometo descansar até o próximo desfile. Por favor, doutor!

 — Rapaz — o médico colocou a mão no ombro do “meu afilhado” —, coloque juízo na cabeça da sua madrinha e a convença que é preciso supervisão médica no caso dela. Vou pedir pra ambulância encostar aqui perto, com licença — concluiu o médico, nos deixando a sós.

   O menino sentou na ponta da maca e me encarou, apreensivo. 

 — O que a senhora tem? Parecia tão bem quando conversamos. O que está fazendo? — berrou ele.

 — Fique quieto! — devolvi, puxando o acesso do soro e do remédio. O sangue começou a jorrar e tapei com a mão mesmo. — Pegue o algodão e o esparadrapo na segunda prateleira. — Agora, Júlio, acorda! Antes que ele volte. — Estiquei-me para ver a movimentação do lado de fora. Ao que parecia, minha escola ainda desfilava, o ambiente não permitia ouvir muito os sons da Sapucaí. — Júlio, faça o que mandei!

   Os meus pedidos foram atendidos e improvisei um curativo para estancar o sangue. 

 — Quanto tempo tem que desmaiei?

 — Menos de dez minutos — calculou ele, após olhar o relógio de pulso. — Não acho prudente a senhora fugir, dona Teresa. Saúde é coisa séria!

 — Carnaval também é, vamos embora! Preciso que me dê cobertura. Júlio — segurei a mão dele e levantei a cabeça —, foi apenas um mal-estar. Estou bem. De verdade.

   Eu o puxei até a porta e vimos o médico conversando com um rapaz ao lado da ambulância, alguns metros de distância. O samba-enredo da minha escola encheu os ouvidos e tomou meu coração. No momento, precisava ignorar a emoção e pensar friamente. Olhei o relógio da pista de desfile, ainda tinha muito tempo de escola. O doutor levantava e abaixava as folhas presas na prancheta, mexendo a cabeça em negativa. Uma ala passou na nossa frente e fez com que a dupla de profissionais sumisse de vista. Perfeito, não poderiam me levar agora. Pensei em correr, mas vi a enfermeira um pouco à direita, fumando um cigarro. 

 — Não tem como a gente escapar, olha — ele apontou para a esquerda e uma equipe de maqueiros conversava na outra rota de fuga. 

   Voltamos para dentro da sala de atendimento e uma luz dourada surgiu na mente. Júlio estava perto da porta vigiando os inimigos.

 — Vamos nos inspirar no passado, Júlio.

 — Sabe, acho melhor mesmo a senhora se internar e... O que disse? — Ele me encarou.

   Mostrei a roupa no chão. 

 — A senhora não vai colocar essa tortura de novo. Eu a proíbo! — sentenciou ele. 

---***---

 — A roupa caiu muito bem em você.

 — Isso é ridículo, dona Teresa! — falou com a vestimenta no corpo. — Fique de olho na porta. Ninguém resolveu a voltar?

   Neguei enquanto gesticulava para que Júlio viesse até a entrada.

 — Vamos aproveitar quando a próxima ala passar por aqui e vamos, ok? — Com a afirmativa dele, me enfiei por debaixo da saia. — Me avise quando for. 

 — Isso não vai dar certo! Estou muito chamativo com essa roupa.

Dei um tapa na perna dele.

— Querido, acredite — precisava convencê-lo de que tudo daria certo —, você nem será visto quando a ala sair, todos os olhares estarão na Avenida. Onde está a enfermeira? Junto com os maqueiros? 

 — Sim, conversando com os maqueiros. A ala foi liberada.

   Nossos passos foram sincronizados. Uma pessoa mais atenta perceberia que havia quatro pés debaixo daquela saia, um pouco mais curta devido à estatura mais alta de Júlio. Não tinha ideia de onde estávamos, eu só via o chão cinza da Sapucaí e os calçados de outros componentes. Minhas costas doíam por estarem muito curvadas e o calor, grande, mas nada que não pudesse aguentar. 

   O chão se tornou asfalto. Estávamos na dispersão. Demos alguns passos, pisei em algumas poças, deviam ser de gelo derretido. Os ambulantes berravam as promoções de bebidas. Júlio parou. O que havia acontecido?

 — O caminhão das baianas — ouvi Júlio dizer perto de mim — acabou de fechar.

   Saí debaixo da saia. Aparentemente, ninguém percebeu. Respirei fundo algumas vezes e me acostumei ao ambiente, ainda via tudo cinza. Tomei a direção do local de entrega das fantasias, berrando o nome da presidente das baianas.

 — Ainda bem que você está bem, Teresa — disse Dona Marta, com a mão no peito. — Avisei ao Osvaldo do ocorrido e ele ia te pegar após o desfile. Eles te liberaram rápido!

 — Eles não me liberaram, eu me liberei, Martinha. Vem, Júlio!

   O rapaz veio, constrangido com o olhar da presidente.

 — Não acredito! — Marta riu. — Abram o caminhão — ela bateu na parte traseira do veículo —, temos mais uma baiana para alojar. Ou seria baiano?

   Júlio despiu-se em questão de segundos. 

 — Dona Teresa, vamos embora, não vou deixar a senhora por aí. Deve ir pra casa e descansar.

 — Poxa, Teresa, acabei de receber uma ligação pedindo reforço lá em Intendente. Meu rapaz, que tal uma passada lá no Campinho? 

 — A senhora não vai, dona Teresa! Onde está com a cabeça?

 — No momento? — questionei.

 — Sim — retorquiu ele —, isso é muito sério! 

 — Na sua mão. — Apontei o adorno esmagador de cérebros seguro nos braços do garoto. — Só coloco no lugar depois do carnaval. Vamos, Júlio — joguei o chapéu dentro do caminhão —, perca um pouco a cabeça também!

   Júlio seguiu meu conselho. Afinal, era carnaval. Ainda bem que fomos para Intendente Magalhães, a escola de samba de Jacarepaguá precisou de um rapaz no estilo do “meu afilhado” para vir em cima do único carro alegórico da agremiação. De apoio de destaque para destaque principal foi o resumo da noite de Júlio. Depois daquele dia, nos tornamos inseparáveis. Além de sermos muito sortudos, nossas escolas foram campeãs. Quando nos perguntavam como nos conhecemos, é simples dizer que nós procurávamos uma cabeça perdida e encontramos uma amizade para toda vida. 


G. J. Moreira nasceu no dia 8 de março, sábado das campeãs do carnaval de 1988. Como o mundo não estava preparado para alguém tão apaixonada por carnaval, não houve esse desfile e sim, uma chuva torrencial no Rio de Janeiro. Gabriella se define como uma metamorfose ambulante que a cada dia rompe preconceitos para se tornar uma pessoa melhor, além de ter o carnaval como estilo de vida e o deboche como arma para sobreviver nesse mundo doido.

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